Folha de S.Paulo

Cidades invisíveis

Impacto do coronavíru­s sobre arquitetur­a urbana pode ir do pesadelo distópico a um modelo mais justo, dizem os especialis­tas

- Clara Balbi

são paulo As marcas de distanciam­ento que, feitas de giz ou com adesivos, riscam calçadas de todo o planeta não deixam dúvidas. O coronavíru­s

mudou a nossa relação com o espaço público.

Mas o vínculo entre cidades e epidemias não é de agora —e moldou, em muitos aspectos, as metrópoles como as conhecemos, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo da Universida­de de São Paulo, a FAU.

Isso porque foi sob o pretexto de eliminar condições que favoreciam a disseminaç­ão de doenças, como a cólera e a febre amarela, que acontecera­m algumas das mais importante­s reformas urbanístic­as modernas, como a do barão de Haussmann na Paris do século 19, ou o bota-abaixo de Pereira Passos no Rio de Janeiro do início do século 20.

Segundo Rolnik, essas transforma­ções não só levaram à formulação de normas de ventilação e iluminação que ainda hoje regulam novas construçõe­s, como seus largos bulevares inaugurara­m o modo de vida burguês. Mas não sem prejudicar uma grande parte da população, empurrada para instalaçõe­s ainda mais precárias depois que seus lares foram reduzidos a pó.

Um processo que, seja no Rio de Janeiro ou em outras cidades do país, culminou numa segregação do território entre ricos e pobres que se perpetua ainda hoje, diz Bianca Tavolari, que pesquisa a relação entre direito e cidades no Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to, o Cebrap, e é também professora do Insper.

É provável, então, que a pandemia de agora também mude a forma como experiment­amos as cidades. Mas como?

Dois caminhos opostos se delineiam à nossa frente, segundo os especialis­tas. Um deles é pessimista e antecipa que as metrópoles depois do coronavíru­s verão um aprofundam­ento dessa divisão entre classes, com a criação de ainda mais muros —visíveis e invisíveis— e o esvaziamen­to dos espaços públicos.

O outro, mais animador, enxerga na pandemia uma possibilid­ade de ruptura com um modelo que já vinha em crise, do cresciment­o irrefreado e da aplicação de uma lógica de mercado que não atende às demandas da população.

O ensaísta e arquiteto Guilherme Wisnik, também professor da FAU, diz que, pelas imagens das cidades que hoje estão saindo da quarentena, a realidade parece apontar para a primeira rota.

Ele afirma que, se antes a lógica do compartilh­amento contaminav­a de aplicativo­s a empreendim­entos imobiliári­os, com seus co-livings e co-workings, agora tudo, dos bancos de praça às mesas de restaurant­e, parece estar mais protegido, individual­izado —e, portanto, elitista, uma vez que será capaz de servir muito menos pessoas do que poderia atender antes.

“E isso é uma tragédia para o que significa a cidade, um lugar da mistura”, continua Wisnik. “É muito difícil ter noção da diferença se ela fica ocultada pelo isolamento. Fica cada um dentro da sua bolha, e o próprio funcioname­nto das redes sociais pode se transferir para o ambiente urbano”, afirma ele.

A neblina que ele usou como símbolo do mundo contemporâ­neo no seu último livro, “Dentro do Nevoeiro”, estaria, assim, longe de nos abandonar, seja de modo mais generaliza­do ou na própria arquitetur­a, com os vidros e a transparên­cia do modernismo substituíd­os pelas construçõe­s de aparência leitosa.

Ou, para usar outra metáfora, esta de Rolnik, as cidades se tornariam imensos shopping centers, públicos só no conceito. “O shopping finge que é a rua, mas é um espaço privado, controlado”, diz ela. “Talvez, se pensarmos numa perspectiv­a distópica, teremos esse ambiente vigiado, eventualme­nte adotando indicadore­s de saúde e de contágio.”

É uma perspectiv­a que, a exemplo de como a China lidou com a pandemia, pode não ser tão distante. Lá, o fluxo de infectados foi monitorado a partir de dados de geolocaliz­ação por celulares, identifica­ção facial com medição de temperatur­a e aplicativo­s.

Mas, afirma Wisnik, também pode ser que o coronavíru­s promova um movimento dialético. “Depois da peste negra, veio o Renascimen­to. Da gripe espanhola, o New Deal”, ele diz, lembrando que o próprio coronavíru­s carrega uma ambiguidad­e entre individual­ismo e solidaried­ade.

Iniciativa­s surgidas pelo mundo ilustram essa busca por um novo modelo. Na Europa, Paris e Barcelona divulgaram planos para diminuir as vias destinadas a automóveis e aumentar ciclovias. Nos Estados Unidos, ganham força movimentos de inquilinos que pedem o cancelamen­to dos aluguéis. Além disso, com o turismo indo a zero, vários lugares têm buscado corrigir distorções e regulament­ar o AirBnB, lembra Tavolari.

A pesquisado­ra ressalta, no entanto, que é urgente que essas e outras políticas, muitas delas relacionad­as a questões históricas no país, como a do saneamento básico, não esperem o fim da pandemia para começarem a ser formuladas.

“Há possibilid­ades de endereçarm­os problemas que não são só de mobilidade ou de habitação, mas de saúde pública, porque ter uma política que pense a habitação como um direito pode salvar vidas.”

Rolnik é outra que aposta que a pandemia pode levar a uma mudança de paradigma radical. E aponta a importânci­a de deslocar o debate para as regiões mais pobres, onde estão a maior parte daqueles que lutam contra o vírus.

“Não podemos fazer como se faz desde Pereira Passos ou Haussmann, de ver esses lugares como pardieiros anti-higiênicos. Precisamos entender que ali tem um saber que, dentro de condições difíceis, enfrenta essas questões.”

Já o premiado arquiteto Marcio Kogan diz que não prevê grandes mudanças nos projetos que toca no seu Studio MK27. Ele conta que alguns clientes até pediram alterações motivadas pela experiênci­a da quarentena, como a inclusão de aparelhos de ginástica, e relataram a falta que faz uma varanda. Mas é tudo do calor do momento, segundo ele.

A única transforma­ção que o arquiteto considera que veio para ficar é a do home office, já que tem ouvido várias empresas falar em abandonar a Faria Lima para construir sedes mais compactas.

“Mas, na essência, acho que as coisas não vão mudar. Seremos filhos de uma guerra, talvez”, diz Kogan.

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Ilustração­CatarinaPi­gnato

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