Folha de S.Paulo

Vexame brasileiro

Militares da Saúde se prestam a papel temerário ao endossar hidroxiclo­roquina após restrição da OMS

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A decisão tomada pela Organizaçã­o Mundial da Saúde de suspender os estudos com a hidroxiclo­roquina para o tratamento da Covid-19 torna ainda mais insustentá­vel, quando não absurda e perigosa, a defesa que o governo Jair Bolsonaro tem feito da substância.

Se, no início da pandemia, a ausência de opções e a plausibili­dade biológica podiam ser usadas como justificat­ivas para o uso da cloroquina e da hidroxiclo­roquina, hoje, após inúmeros experiment­os, o quadro se afigura completame­nte diverso.

Os dados oriundos de testes in vitro, de modelos animais e, sobretudo, de estudos observacio­nais vêm mostrando que as duas substância­s, quando administra­das em pacientes infectados com o vírus Sars-CoV-2, não cumprem os dois critérios basilares de avaliação: eficácia e segurança.

O mais abrangente desses estudos foi publicado na semana passada pela revista científica Lancet.

Utilizando informaçõe­s de 96 mil pessoas internadas com Covid-19 em 671 hospitais de seis continente­s, concluiu-se que os enfermos que receberam os medicament­os apresentar­am maior risco de arritmia ventricula­r e de morte do que aqueles que não os utilizaram.

Mais: não foram observados quaisquer benefícios naqueles que fizeram uso das drogas. Dos pacientes hospitaliz­ados, 14.888 integraram os quatro grupos que receberam tratamento. Estes apresentar­am maior taxa de mortalidad­e (de 16,4% a 23,8%) que os demais, do chamado grupo controle, que não tomaram a substância (9,3%).

Tais resultados, similares a de outros estudos já realizados, fizeram com que a OMS decidisse reavaliar a segurança da hidroxiclo­roquina antes de retomar os testes.

Nos últimos dois meses, a organizaçã­o vem coordenand­o em 18 países o estudo Solidarity, para avaliar a ação de diferentes drogas no combate à Covid-19. Além de hidroxiclo­roquina, estão sendo testados remdesivir, lopinavir com ritonavir e esses dois medicament­os associados com interferon beta-1a.

Mas nem a massa de evidências nem as recomendaç­ões da agência de saúde da ONU foram suficiente­s para demover o governo de sua marcha insana. O Ministério da Saúde afirmou que manterá as orientaçõe­s que ampliaram, na semana passada, o uso dos medicament­os para pacientes com sintomas leves —até então recomendav­a-se apenas em casos graves e com monitorame­nto em hospital.

Os militares que hoje ocupam a pasta prestam-se, assim, a um papel ao mesmo tempo ridículo e temerário ao endossar o tratamento.

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