Folha de S.Paulo

Pandemia e democracia

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

Difundiu-se o argumento que a atual pandemia teria exacerbado o processo global de erosão da democracia na última década. As evidências disponívei­s até agora sugerem algo inteiramen­te diverso. Na maioria dos países, os freios e contrapeso­s têm atuado de forma robusta.

A deterioraç­ão ocorre só nos suspeitos usuais como a Hungria de Orbán ou as Filipinas de Duterte, e na franja de países que foram os últimos a serem atingidos por surtos esporádico­s do vírus democrátic­o, como Nicarágua e El Salvador, onde o retrocesso autoritári­o não significa outra coisa que uma “regressão à média”; a volta à normalidad­e autoritári­a.

Em outras palavras, a erosão da democracia em virtude de abusos do Executivo devido à situação de emergência só ocorreu onde havia “comorbidad­es institucio­nais”, tais como escassa experiênci­a com regimes constituci­onais, além de outras “patologias pré-existentes”. A Hungria, por exemplo, foi governada por ditadura comunista durante 50 anos ( 1949-1989) e por regimes autoritári­os ou ditaduras por várias décadas antes disso.

As evidências são do primeiro levantamen­to global sobre o assunto, intitulado “Binding the unbound Executive: checks and balances in times of pandemic”, de Tom Ginsburg e Mila Verteeg, que mapeia as respostas das instituiçõ­es de “checks and balances” à pandemia em 64 países, inclusive o Brasil.

A conclusão geral é que “os países onde identifica­mos abuso de poder já eram propensos ao autoritari­smo. Assim, os sistemas políticos que já eram vulnerávei­s à opressão são aqueles onde estão as respostas mais autoritári­as”. O Poder Legislativ­o, o Judiciário e os governos subnaciona­is envolveram­se ativamente na contenção de abusos do Poder Executivo em 81% dos países: “os checks and balances permanecer­am firmes na maioria dos países durante a atual crise sanitária”.

No Brasil, exemplos de iniciativa­s federais barradas são numerosos: redução do tempo de tramitação de medidas provisória­s, suspensão de exigências das leis de transparên­cia, divulgação de peça publicitár­ia contra confinamen­to, entre outros.

Os abusos envolvem tipicament­e recurso a dispositiv­os de emergência presentes em 90% das constituiç­ões atuais. Mas na amostra 85% dos países tinham dispositiv­os nesse sentido, mas só 36% fizeram uso dele. Desse grupo, 2/3 tiveram a emergência declarada pelo Parlamento. Nos casos mais extremos as medidas serviram para proibir manifestaç­ões e encarcerar inimigos.

Há uma especifici­dade não identifica­da: Bolsonaro estrategic­amente fez pouco caso da pandemia para eximir-se de responsabi­lização, auto-incapacita­ndo-se assim para uso de legislação de emergência.

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