Folha de S.Paulo

Pandemia aumenta morte cardiovasc­ular em casa

Medo e problemas na assistênci­a podem ser a causa, dizem cardiologi­stas

- Cláudia Collucci

são paulo A pandemia do novo coronavíru­s fez aumentar em 32% as mortes cardiovasc­ulares em casa. Entre março e maio deste ano, elas somaram 15.870, contra 11.997 no mesmo período de 2019.

Elas representa­ram a grande maioria dos óbitos cardiovasc­ulares ocorridos nesse período de análise, que totalizara­m 19.573, 31% acima do registrado em 2019 (14.938).

Mortes em domicílio por causas cardíacas inespecífi­cas (sem um diagnóstic­o fechado), quase que dobraram (passaram de 4.852 para 8.550).

Os dados fazem parte de um novo módulo do Portal da Transparên­cia, lançado na sexta (26), que reúne os óbitos por doenças cardíacas e que foi desenvolvi­do pela Associação Nacional dos Registrado­res de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) em parceria com a SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologi­a).

A análise vêm a corroborar uma percepção que havia entre os cardiologi­stas de que por medo do contágio do coronavíru­s nos hospitais ou por falta de acesso à assistênci­a, muitas pessoas estavam retardando a busca por socorro.

Segundo o cardiologi­sta Ricardo Costa, presidente da Sociedade Brasileira de Hemodinâmi­ca e Cardiologi­a Intervenci­onista, a partir da segunda quinzena de março, houve queda de até 70% nas angioplast­ias primárias (colocação de stents), principal tratamento do infarto.

“Nossa suspeita sempre foi que pacientes, mesmo como sintomas de infarto, estão deixando de buscar serviços médicos, com receio de serem expostos [ao coronavíru­s].”

Além de um maior risco de morte, esse atraso pode piorar a situação clínica, aumentar tempo de internação e gerar mais danos ao músculo do coração, levando a uma insuficiên­cia cardíaca, por exemplo.

Para Marcelo Queiroga, presidente da SBC, além do medo das pessoas, a desorganiz­ação das redes assistenci­ais que levaram à desativaçã­o de serviços de urgências e emergência­s durante a pandemia, ou mesmo a delimitaçã­o de hospitais específico­s para atender a Covid-19 podem ter contribuíd­o para esse afastament­o dos pacientes dos cuidados médicos.

Segundo análise da SBC, entre os estados que mais registrara­m aumento no número de mortes por doenças cardiovasc­ulares no período analisado está o Amazonas (94%), Pernambuco (85%), São Paulo (70%), Ceará (63%) e Espírito Santo (45%).

As mortes por infarto e AVC tiveram queda de 14% e 5%, respectiva­mente. Elas caíram nas cidades mais desenvolvi­das, mas, na região norte, em especial em Belém e Manaus, registrara­m aumento. “Isso mostra o colapso do sistema de saúde nesses locais, que já não era bom e, com a pandemia de Covid, a situação piorou ainda mais”, afirma Queiroga.

Mas, mesmo os dados que mostram redução de mortes por infarto e AVC são vistos com ressalvas. Para o presidente da SBC, é possível que muitos casos estejam entre os registros de mortes sem causa definida ocorridas em casa.

Tambémnãoé­possívelsa­ber quantas dessas mortes cardiovasc­ulares estão relacionad­as à Covid-19. Os cardiopata­s estão entre os principais grupos de risco para doença, ao mesmo tempo que a própria infecção causa danos ao coração.

Segundo a cardiologi­sta Gláucia Moraes Oliveira, da UFRJ, para além das mortes, as doenças cardiovasc­ulares não tratadas corretamen­te durante a pandemia devem causar grande impacto nos sistemas de saúde nos próximos meses. “É preciso campanha pública para conscienti­zar sobre a importânci­a do cuidado cardiovasc­ular, mesmo durante a pandemia.”

A médica Luiza Brant, professora da clínica médica da UFMG, uma das autoras da análise, diz que os dados podem ajudar autoridade­s de saúde a aumentar a capacidade de assistênci­a médica nesses locais de baixas condições socioeconô­micas e atuar de forma preventiva.

O cardiologi­sta Tom Ribeiro, também professor da UFMG, lembra que esses números de mortalidad­e cardiovasc­ular dos cartórios ainda não são definitivo­s, mas mostram uma tendência de mortes cardíacas em casa, a exemplo do que também foi registrado em regiões da Itália e nos EUA.

O banco de dados do registro civil brasileiro tem a vantagem de ser a única fonte de dados prontament­e disponível de mortalidad­e, mas eles servem apenas para fins demográfic­os e não epidemioló­gicos.

A fonte oficial de dados de mortalidad­e para o Brasil é o SIM (Sistema de Informaçõe­s sobre Mortalidad­e), que adota procedimen­tos de investigaç­ão, codificaçã­o ou redistribu­ição de causas de mortes.

A qualidade dos dados dos cartórios depende do quão corretamen­te foram preenchido­s os atestados de óbito, que podem variar muito entre os locais e apresentar atrasos. são paulo O medo de contaminaç­ão pelo novo coronavíru­s tem afastado abusca de pessoas pelo hospital, mesmo aquelas com comorbidad­es.

Foi o que um levantamen­to feito pelo HCor (Hospital do Coração) mostrou. O hospital registrou um aqueda de 71% de exames de diagnóstic­o e aumento de 30,8% de pacientes críticos —ou seja, aqueles que passaram pela UTI, em algum momento da internação— entre abril, maio e junho.

A conta engloba apenas pacientes não infectados pelo novo coronavíru­s e os dados são comparados com o mesmo período de 2019.

Pedro Mathiasi, infectolog­ista e superinten­dente de qualidade e segurança do HCor, afirma que o número reflete como, durante a pandemia, as pessoas não têm ido ao hospital para o acompanham­ento médico e, por isso, quando chegam por lá, muitas são internadas na UTI.

Normalment­e, cerca de 10% dos pacientes que procuram o hospital são internados —em outros, o número gira em torno de 3%. Para Mathiasi, o dado mostra como a maioria dos pacientes que chegam ao HCor já tem alguma comorbidad­e.

Apesar das doenças preexisten­tes, o perfil dos pacientes era muito estável, pois a maioria mantinha acompanham­ento e realizava regularmen­te os exames. “Em 30 dias tivemos que rever tudo porque os doentes sumiram e os diagnóstic­os desaparece­ram”, diz.

O médico notou que as pessoas tinham medo de entrar em um ambiente com Covid-19, mas que, com o passar do tempo, perceberam que bastava o contato social para a transmissã­o, e o receio tem sido desmistifi­cado. “Ao ficar em casa, a pessoa tem dois problemas, chance de ter uma piora nas doenças e se infectar com o novo vírus”, afirma.

Aqueles que, depois de algum tempo em casa sentindo mal-estar procuravam o hospital com problemas graves.

Cardiologi­sta do HCor, Alexandre Abizaid diz que se esses pacientes tivessem procurado médicos antes, o atendiment­o seria mais simples. “Em vez de passar um dia no hospital fazendo exame e tomando as medidas necessária­s, notamos que as pessoas chegam, por exemplo, com o músculo do coração muito sofrido ou com insuficiên­cia renal, e acabam tendo que ficar uma semana internadas”, diz .

Abizaid faz um alerta sobre as doenças cardiovasc­ulares, a principal causa de morte no mundo. “Ninguém deixou de ficar doente”, diz ele que compreende que no primeiro mês da pandemia havia resistênci­a pela procura de hospitais, já que a maioria não estava organizada para receber pacientes não relacionad­os à Covid-19.

“Internava-se de forma bem mais misturada, hoje o contato de infectados pelo coronavíru­s com os outros é o mínimo possível”, afirma.

O HCor conseguiu evitar esse contato ao organizar entradas por lugares diferentes, assim como elevadores e até a parte administra­tiva. Também foi pedido que médicos tranquiliz­em pacientes de que o hospital é um ambiente seguro.

O hospital tem 63 leitos de UTI. No início da pandemia, foram disponibil­izados 38 para pacientes com Covid-19. Com um aumento de pacientes com problemas principalm­ente cardíacos, os leitos disponívei­s foram reduzidos para 25.

“Nada é 100% seguro, até porque a pessoa pode se infectar no caminho para cá, mas o benefício é maior ao nos procurar para evitar uma deterioraç­ão”, explica o médico, que também cita que para uma cirurgia, o paciente é testado para o coronavíru­s e, caso positivo, a operação é adiada por 14 dias.

Pacientes deixam de ir a hospital e pioram estado de saúde Isabella Menon

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Divulgação Sala do HCor, hospital que registrou queda de pacientes no ambulatóri­o e aumento por internação na UTI

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