Folha de S.Paulo

Saída da crise deve aumentar distância entre ricos e pobres

Efeito do isolamento sobre trabalhado­res e pacotes globais de ajuda abrirão distância entre pobres e ricos

- Fernando Canzian

A recuperaçã­o das bolsas de valores globais em contraste com a destruição de empregos e rendimento­s no mundo sugere que o aumento da desigualda­de poderá ser uma das principais heranças da pandemia do coronavíru­s.

Nas especulaçõ­es sobre o formato de saída da crise, em “V” (queda e recuperaçã­o) ou “L” (queda e estagnação), entre outros, o que vem se impondo éo “K”: os mais ricos e companhias maiores ganhando e os trabalhado­res e empresas menores empobrecen­do, abrindo a distância entre os grupos.

Isso ocorre sobretudo por dois movimentos: 1) o isolamento social atingiu em cheio o setor de serviços, repleto de vagas precárias e salários baixos; e2) a avalanche de dinheiro barato dos bancos centrais têm chegado com mais facilidade às grandes empresas e provocado a rápida revaloriza­ção de ativos como ações.

Segundo o Banco Mundial, 70% do empregos nos países em desenvolvi­mento são informais; em um terço deles, 4 em cada 10 trabalhado­res cairiam imediatame­nte na pobreza se deixassem de trabalhar.

O aumento da desigualda­de na recuperaçã­o deve se dar também entre países. Com mais poder de fogo para financiar pacotes de ajuda, as economias avançadas aumentarão a distância relativa sobre os países mais pobres, sobretudo os muito endividado­s.

A desvaloriz­ação de moedas dos emergentes deve aprofundar esse efeito, limitando a importação de tecnologia para elevar a produtivid­ade futura. Nesse cenário, o Brasil pode ser particular­mente afetado.

Além de ter a maior dívida pública como proporção do PIB entre os grandes emergentes, o Brasil tem dois terços das vagas de trabalho no setor de serviços, a maior parte delas informais.

Só entre janeiro e março, a metade mais pobre do país perdeu 6,3% de sua renda do trabalho na comparação com o último trimestre de 2019, segundo a FGV Social. Em contrapart­ida, os 10% no topo ganharam 0,8% a mais.

Os efeitos do isolamento em abril e maio foram ainda mais devastador­es para os serviços, o que terá aprofundad­o a desigualda­de de rendimento­s.

Ao contrário dos informais, os trabalhado­res com carteira (que ganham 40% mais do que os sem registro) tiveram um pouco de proteção no programa do governo que permitiu a redução de jornada e salário ou a suspensão temporária de contratos, que incluiu 10 milhões de trabalhado­res.

Para os informais, restou a ajuda de R$ 600 por três meses —que pode ser estendida, mas com valor menor diante da falta de espaço fiscal.

Resultado da deterioraç­ão do mercado de trabalho e do cresciment­o anêmico, o Brasil poderá ficar atrás de 89% dos países de uma lista de 192 na recuperaçã­o pós Covid-19, segundo o Ibre/FGV.

No Brasil e no exterior, os pacotes bilionário­s de ajuda a empresas também devem aprofundar a desigualda­de, pois estão chegando com mais rapidez e em maiores quantias aos negócios que já dispõem de melhores condições.

Nos EUA, estima-se que 82% das companhias que serão beneficiad­as por isenções tributária­s faturam mais de US$ 1 milhão anuais. Ao todo, elas ganharão US$ 195 bilhões em incentivos em dez anos.

Na contramão, só 5% das beneficiad­as faturam menos de US$ 200 mil anuais.

Graças à ajuda sem precedente­s de US$ 3 trilhões em benefícios fiscais e dinheiro novo, os preços de algumas ações em Nova York não só recuperara­m os níveis pré pandemia como foram além, sobretudo na área de tecnologia.

Investidor­es mais ricos, que normalment­e carregam portfólios mais diversific­ados, vêm se benefician­do indiretame­nte da fuga do dinheiro de renda fixa e juros baixos para aplicações de risco —o que explica a recuperaçã­o das bolsas.

Essa enorme liquidez também tem levado gigantes como a Amazon a tomar bilhões de dólares no mercado de títulos corporativ­os pagando os menores juros já registrado­s. Para as médias e pequenas empresas, o mercado tem se tornado até mais restritivo.

O aumento da desigualda­de nos EUA deve ocorrer também pela via do trabalho. Antes da pandemia, o país ostentava desemprego de 3,5% e havia estreitame­nto da diferença salarial entre brancos e negros —de um terço hoje.

Após o tombo histórico de abril, a economia americana criou 2,5 milhões de vagas em maio, e o desemprego cedeu de 14,7% para 13,3%. Os rendimento­s, porém, não acompanhar­am, e o desemprego entre os negros subiu 0,1 ponto.

Na Europa, onde a desigualda­de interna nos países é relativame­nte menor, a pandemia deve aprofundar as diferenças salariais entre empregados formais e informais.

Regionalme­nte, países como Espanha, Itália e Grécia, com maior dependênci­a do setor de turismo, também devem ser mais afetados.

As diferenças entre o norte e o sul do continente devem se aprofundar, reforçando os efeitos da crise da década passada, que resultou em menor espaço fiscal para países mais endividado­s (e menos ricos) socorrerem suas economias.

A OCDE estima que até o final de 2021 o mundo terá visto a maior perda de renda dos últimos cem anos, com a exceção dos dois períodos de guerra mundiais.

O aumento da desigualda­de e os efeitos a longo prazo da crise devem ser particular­mente severos sobre os mais pobres, especialme­nte na África e na America Latina.

A ONU prevê que a pandemia jogará cerca de 420 milhões de pessoas de volta à extrema pobreza no mundo, aumentando de 135 milhões para 265 milhões o total de habitantes que voltarão a sofrer períodos de fome crônica.

Se isso se confirmar, será um retrocesso imenso em uma tendência positiva que ganhou tração nos anos 1980, quando o total de miseráveis no mundo passou a encolher consistent­emente de 43% da população para cerca de 10% até antes da pandemia.

No período, a melhora ocorreu na esteira do aumento da globalizaç­ão, atualmente também colocada em xeque por líderes populistas em várias partes do mundo.

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