Saída da crise deve aumentar distância entre ricos e pobres
Efeito do isolamento sobre trabalhadores e pacotes globais de ajuda abrirão distância entre pobres e ricos
A recuperação das bolsas de valores globais em contraste com a destruição de empregos e rendimentos no mundo sugere que o aumento da desigualdade poderá ser uma das principais heranças da pandemia do coronavírus.
Nas especulações sobre o formato de saída da crise, em “V” (queda e recuperação) ou “L” (queda e estagnação), entre outros, o que vem se impondo éo “K”: os mais ricos e companhias maiores ganhando e os trabalhadores e empresas menores empobrecendo, abrindo a distância entre os grupos.
Isso ocorre sobretudo por dois movimentos: 1) o isolamento social atingiu em cheio o setor de serviços, repleto de vagas precárias e salários baixos; e2) a avalanche de dinheiro barato dos bancos centrais têm chegado com mais facilidade às grandes empresas e provocado a rápida revalorização de ativos como ações.
Segundo o Banco Mundial, 70% do empregos nos países em desenvolvimento são informais; em um terço deles, 4 em cada 10 trabalhadores cairiam imediatamente na pobreza se deixassem de trabalhar.
O aumento da desigualdade na recuperação deve se dar também entre países. Com mais poder de fogo para financiar pacotes de ajuda, as economias avançadas aumentarão a distância relativa sobre os países mais pobres, sobretudo os muito endividados.
A desvalorização de moedas dos emergentes deve aprofundar esse efeito, limitando a importação de tecnologia para elevar a produtividade futura. Nesse cenário, o Brasil pode ser particularmente afetado.
Além de ter a maior dívida pública como proporção do PIB entre os grandes emergentes, o Brasil tem dois terços das vagas de trabalho no setor de serviços, a maior parte delas informais.
Só entre janeiro e março, a metade mais pobre do país perdeu 6,3% de sua renda do trabalho na comparação com o último trimestre de 2019, segundo a FGV Social. Em contrapartida, os 10% no topo ganharam 0,8% a mais.
Os efeitos do isolamento em abril e maio foram ainda mais devastadores para os serviços, o que terá aprofundado a desigualdade de rendimentos.
Ao contrário dos informais, os trabalhadores com carteira (que ganham 40% mais do que os sem registro) tiveram um pouco de proteção no programa do governo que permitiu a redução de jornada e salário ou a suspensão temporária de contratos, que incluiu 10 milhões de trabalhadores.
Para os informais, restou a ajuda de R$ 600 por três meses —que pode ser estendida, mas com valor menor diante da falta de espaço fiscal.
Resultado da deterioração do mercado de trabalho e do crescimento anêmico, o Brasil poderá ficar atrás de 89% dos países de uma lista de 192 na recuperação pós Covid-19, segundo o Ibre/FGV.
No Brasil e no exterior, os pacotes bilionários de ajuda a empresas também devem aprofundar a desigualdade, pois estão chegando com mais rapidez e em maiores quantias aos negócios que já dispõem de melhores condições.
Nos EUA, estima-se que 82% das companhias que serão beneficiadas por isenções tributárias faturam mais de US$ 1 milhão anuais. Ao todo, elas ganharão US$ 195 bilhões em incentivos em dez anos.
Na contramão, só 5% das beneficiadas faturam menos de US$ 200 mil anuais.
Graças à ajuda sem precedentes de US$ 3 trilhões em benefícios fiscais e dinheiro novo, os preços de algumas ações em Nova York não só recuperaram os níveis pré pandemia como foram além, sobretudo na área de tecnologia.
Investidores mais ricos, que normalmente carregam portfólios mais diversificados, vêm se beneficiando indiretamente da fuga do dinheiro de renda fixa e juros baixos para aplicações de risco —o que explica a recuperação das bolsas.
Essa enorme liquidez também tem levado gigantes como a Amazon a tomar bilhões de dólares no mercado de títulos corporativos pagando os menores juros já registrados. Para as médias e pequenas empresas, o mercado tem se tornado até mais restritivo.
O aumento da desigualdade nos EUA deve ocorrer também pela via do trabalho. Antes da pandemia, o país ostentava desemprego de 3,5% e havia estreitamento da diferença salarial entre brancos e negros —de um terço hoje.
Após o tombo histórico de abril, a economia americana criou 2,5 milhões de vagas em maio, e o desemprego cedeu de 14,7% para 13,3%. Os rendimentos, porém, não acompanharam, e o desemprego entre os negros subiu 0,1 ponto.
Na Europa, onde a desigualdade interna nos países é relativamente menor, a pandemia deve aprofundar as diferenças salariais entre empregados formais e informais.
Regionalmente, países como Espanha, Itália e Grécia, com maior dependência do setor de turismo, também devem ser mais afetados.
As diferenças entre o norte e o sul do continente devem se aprofundar, reforçando os efeitos da crise da década passada, que resultou em menor espaço fiscal para países mais endividados (e menos ricos) socorrerem suas economias.
A OCDE estima que até o final de 2021 o mundo terá visto a maior perda de renda dos últimos cem anos, com a exceção dos dois períodos de guerra mundiais.
O aumento da desigualdade e os efeitos a longo prazo da crise devem ser particularmente severos sobre os mais pobres, especialmente na África e na America Latina.
A ONU prevê que a pandemia jogará cerca de 420 milhões de pessoas de volta à extrema pobreza no mundo, aumentando de 135 milhões para 265 milhões o total de habitantes que voltarão a sofrer períodos de fome crônica.
Se isso se confirmar, será um retrocesso imenso em uma tendência positiva que ganhou tração nos anos 1980, quando o total de miseráveis no mundo passou a encolher consistentemente de 43% da população para cerca de 10% até antes da pandemia.
No período, a melhora ocorreu na esteira do aumento da globalização, atualmente também colocada em xeque por líderes populistas em várias partes do mundo.