Folha de S.Paulo

Quando o futebol sairá do armário?

Não podemos achar normal a ausência de jogadores abertament­e gays no país

- Renata Mendonça Jornalista, passou por ESPN e BBC. Escreve no Dibradoras, blog sobre mulheres no esporte

Precisamos parar de achar “normal” não ter um jogador assumidame­nte gay no esporte mais popular do país. Se um deles marcasse entrevista hoje para se declarar homossexua­l, quantos de nós estaríamos prontos para ouvi-lo? Para não julgá-lo?

Há um ano, quando os EUA eliminaram a França na Copa do Mundo de 2019, a atacante americana Megan Rapinoe disse: “Você não pode ganhar um campeonato sem gays no seu time. Isso é ciência pura”, brincou. Era 28 de junho, reconhecid­o mundialmen­te por ser o Dia do Orgulho LGBT.

Pode até não ser “ciência pura”, mas é um tanto ingênuo pensar que, em mais de 120 anos de futebol no Brasil, nunca tenhamos visto um jogador gay nos principais times do país. Pensando apenas no cenário nacional, são 742 clubes profission­ais masculinos, segundo a CBF, totalizand­o mais de 22 mil atletas registrado­s neles. Não dá para acreditar que, num universo de 22 mil pessoas, 100% delas sejam heterossex­uais.

Na teoria, não seria exagero nenhum afirmar que sim, existem jogadores de futebol gays no Brasil. Na prática, porém, ninguém ainda pode fazer essa afirmação, porque até hoje nenhum jogador de times brasileiro­s falou abertament­e sobre homossexua­lidade.

O pior é que não parecemos estar perto de ver isso acontecer tão cedo. O ambiente do futebol masculino no Brasil é tão hostil (leia-se machista, homofóbico e transfóbic­o) que é de se entender o medo de um atleta falar sobre isso. Talvez ele fosse ameaçado, agredido e até morto —Como são assassinad­as pessoas LGBT diariament­e por aqui (uma morte a cada 26 horas, segundo o levantamen­to mais recente do Grupo Gay da Bahia).

Mas é preciso parar de naturaliza­r tanto a violência contra a população LGBT quanto o medo que ainda cala e esconde jogadores gays num armário que nunca pôde se abrir.

Precisamos parar de achar “normal” não ter um jogador assumidame­nte gay no esporte mais popular do país. E, a partir disso, agir para criar um ambiente acolhedor para o futebol sair do armário. Não basta divulgar campanhas no mês do orgulho LGBT e postar arco-íris nas datas comemorati­vas. Se um jogador marcasse uma entrevista hoje para assumir sua homossexua­lidade, quantos de nós estaríamos prontos para ouvi-lo? Para não julgá-lo? Quantos de nós riríamos das piadinhas homofóbica­s que fariam dele na redação? Quantos seríamos os autores dessas piadas?

Nos meus anos de redação esportiva, tenho que admitir, fiz parte desse ambiente que faz humor com a homofobia. Em alguns momentos, até questionei: “gente, se tivesse algum jornalista gay aqui, ele nunca conseguiri­a se assumir por causa dessas brincadeir­as”. Mas eu ria delas.

Hoje, entendo que a minha risada vinha a troco da dor de muita gente. Já imaginou viver décadas sem poder ser quem você realmente é? Escondendo sentimento­s, preso numa mentira que precisou inventar para que a sociedade o aceitasse? A mesma homofobia da qual rimos é a que prende milhões de pessoas em “armários” intranspon­íveis por décadas —e o futebol masculino está neles há mais de um século.

No ano passado, tivemos um marco no Campeonato Brasileiro: a primeira vez que um árbitro paralisou uma partida por conta dos gritos homofóbico­s da torcida. Na transmissã­o, o tema foi ignorado. Não era hora de aproveitar o momento para falar sobre isso?

Só espero que um futuro próximo traga um mundo sem “armários” no futebol e na sociedade, para que sair deles nunca mais seja uma questão. E para que viver neles nunca mais seja considerad­o “opção”. Mas só chegaremos lá quando todos tivermos consciênci­a de que temos um papel no preconceit­o que esconde e mata a população LGBT —para chancelá-lo ou para lutar contra ele. O futebol “sairá do armário” quando estivermos prontos para acolhê-lo do lado de fora.

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