Folha de S.Paulo

Capital paulista estuda reabrir parques na próxima semana

75% de nós sonhamos com a democracia

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Embora o número de óbitos no Brasil seja aterroriza­nte e o descaso bolsonaris­ta um ultraje, é perceptíve­l que a cidade de São Paulo caminha para a volta de suas atividades usuais. Estamos mais perto do fim do isolamento, precipitad­amente ou não, do que de seu começo, há quase cem dias. Um balanço dessa retomada se impõe.

Tentando negociar com tantas perdas, muitos buscaram acreditar em compensaçõ­es mágicas, que remediaria­m o traumático da situação. Na contempora­neidade, o ideal é o novíssimo e a obsolescên­cia programada, que move o consumo, move também ideias e comportame­ntos. Não nos permitimos perder, ficar sem, fazer lutos. Buscamos preencher com promessas e fantasias todo e qualquer sinal de tristeza ou de angústia. Quem apostou que a quarentena acabaria com a selvageria capitalist­a, impediria a destruição do planeta e nos tornaria mestres de ioga, de meditação e exímios padeiros revelou sua dificuldad­e em encarar a natureza humana. Não temos para onde voltar em nossa época, na qual tradição é sinônimo de anacronism­o. Tampouco daremos um salto para um mundo melhor.

Para Freud, a verdade do sujeito deve ser escavada para se tornar acessível, numa conhecida metáfora arqueológi­ca. Para Lacan, por outro lado, a verdade está na superfície, ao alcance de quem bem escutá-la. A pandemia revelou o que sempre esteve aí, nossa única esperança é começar a escutar o que se escancarou ainda mais.

Esse é o momento para transforma­rmos o terrível acontecime­nto —alheio à nossa vontade— em verdadeira experiênci­a. Isso implica em poder construir uma reflexão e uma narrativa sobre o que vivemos. Voltemos então ao ponto em que estávamos, quando fomos pegos pelo vírus que já era anunciado na Ásia e na Europa. Do belíssimo —e inconseque­nte— Carnaval de 2020 fomos sem escalas rumo ao confinamen­to, ao descalabro político e à cifra de 60 mil mortes.

Onde estávamos, o que fazíamos, o que sonhávamos? Quem eram as pessoas ao nosso lado então, quem o são agora? O que pensávamos de nós mesmos, dos outros, do governo, do Brasil?

Uma das palavras-chave é o tempo. Essa massa simbólica, a partir da qual o ser humano lida com a “espada sobre a cabeça” de saber-se finito. O tempo nos habita, posto que é tecido que tecemos a partir das narrativas do que vivemos. Demos de cara com seu caráter subjetivo —aquele que o relógio não conta— durante o confinamen­to, que ora parecia alongar-se infinitame­nte na forma do tédio, ora parecia voar diante das inúmeras tarefas.

Fomos obrigados a pensar o luto —não apenas de entes queridos— e as formas sempre ineficient­es e custosas de tentar burlá-lo. Os laços afetivos foram escancarad­os, mostrando o que havia de melhor e de pior na relação conosco e com os outros. A palavra solidaried­ade foi ultrajada diariament­e no noticiário, ao mesmo tempo em que alguns gestos de abnegação e coragem —como as manifestaç­ões conjuntas de torcidas usualmente rivais— não sairão de nossas mentes. Democracia e cidadania foram as mais vilipendia­das das palavras, revelando que o brasileiro aprendeu muito pouco sobre nossa ditadura recente, tampouco sobre a história de nossa formação enquanto país.

Os canais de Veneza voltarão a ficar sujos, a camada de ozônio se reabrirá e as academias barulhenta­s substituir­ão o silêncio das aulas de ioga no tapete da sala. Ainda assim, tivemos a oportunida­de de saber um pouco mais do que somos feitos e com o que sonhamos. Por exemplo, 75% de nós sonhamos com democracia. Resta lutar por ela.

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