Folha de S.Paulo

Democracia em disputa

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

A última pesquisa Datafolha mostrou que o apoio à democracia disparou e atingiu o maior índice desde que começou a ser medido, em 1989. Setenta e cinco por cento apoiam hoje a democracia, ante 62% que a apoiavam em dezembro de 2019 e índices ainda menores no passado.

Uma interpreta­ção possível, como a que constava na manchete da Folha de domingo (“Apoio à democracia bate recorde diante do risco Bolsonaro”), é a de que, reagindo às ameaças de ruptura institucio­nal, os brasileiro­s reforçaram seu apoio à democracia. Mas será que essa é a interpreta­ção mais plausível?

Antes da pesquisa de junho de 2020, o recorde de apoio à democracia havia sido registrado em outubro de 2018, às vésperas da eleição presidenci­al, quando a dúvida era se Bolsonaro venceria apenas com larga vantagem ou se elegeria logo no primeiro turno.

O que parecia explicar aquele recorde de apoio à democracia era o fato de um candidato outsider, sem alianças, sem financiame­nto de campanha e sem tempo de TV ter conseguido derrotar todo o establishm­ent político. De fato, se deixássemo­s de lado que esse candidato fazia apologia da ditadura militar e defendia a tortura —como parece que fez seu eleitor—, aquele sucesso eleitoral mostrava mesmo um vigor da democracia brasileira e um triunfo da soberania popular.

O fenômeno de 2018 talvez seja a chave para entender o novo recorde de 2020. A leitura de que o crescente apoio à democracia é apenas reação contra o autoritari­smo de Bolsonaro despreza o fato de que, se uma parte dos bolsonaris­tas faz apologia da ditadura, celebrando até mesmo o AI5, uma parte maior adotou o léxico da democracia.

Estes últimos acreditam que é preciso proteger a democracia de uma ditadura do STF e dos governador­es: do Supremo, porque extrapola seu papel ao se impor sobre o Executivo, e dos governador­es, porque ameaçam prender os cidadãos sob o pretexto de um vírus cuja letalidade é exagerada. Para eles, seriam também antidemocr­áticas as tentativas de censura às redes sociais, sob o pretexto de combater notícias falsas, assim como a interferên­cia de organismos internacio­nais, como a OMS, que ferem a soberania nacional.

Enquanto uma parte do bolsonaris­mo faz o discurso da ordem autoritári­a, outra parte concebe esse mesmo projeto como a expressão mais plena da democracia. Isso talvez explique o fato de que, na pesquisa Datafolha, quem avalia bem Bolsonaro apoia menos a democracia, mas só um pouco menos (68% contra 79% dos demais).

Tanto críticos como apoiadores de Bolsonaro celebram a democracia —mas atribuem sentidos muito diferentes a ela.

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