Folha de S.Paulo

A escravidão mora ao lado

- Cristina Serra

brasília O caso aconteceu num dos bairros mais ricos da cidade mais rica do Brasil. Uma mulher, de 61 anos, foi abandonada num depósito de trastes nos fundos da casa dos patrões, em São Paulo, sem salário, sem comida e sem banheiro, em plena pandemia. Segundo a investigaç­ão, a idosa trabalhava para a família havia 22 anos. A patroa, Mariah Corazza Ustundag, foi indiciada por submeter a empregada a condição análoga à escravidão. Pagou fiança de R$ 2.100 e foi liberada.

Formas contemporâ­neas de submissão de trabalhado­res perduram num país de tão entranhado legado escravocra­ta. Em 2003, o Ministério do Trabalho deu início a uma política de combate a essa aberração ao criar a Lista Suja do Trabalho Escravo, que, periodicam­ente, divulgava os nomes dos empregador­es autuados por manter trabalhado­res em situação similar à escravidão. A Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho considerou essa política pública um exemplo a ser seguido na luta contra a exploração degradante de trabalhado­res.

A Lista Suja, porém, nunca foi aceita sem questionam­entos judiciais por entidades patronais, que consideram o cadastro uma afronta ao direito de defesa das empresas. A ação mais recente à espera de julgamento pelo plenário do STF questiona a constituci­onalidade da Lista Suja. Enquanto não se chega a uma pacificaçã­o jurídica sobre o tema, o Executivo —já desde o governo de Michel Temer— vem fazendo a sua parte para, praticamen­te, anular o enfrentame­nto ao trabalho escravo.

O resgate de trabalhado­res costumava acontecer nos cafundós da Amazônia, em canteiros de obras ou em oficinas de costura que exploram imigrantes. Desta vez, porém, a doméstica resgatada trabalhava numa casa no Alto de Pinheiros, endereço de políticos, empresário­s, enfim, “gente de bem”. Não se deve ao acaso que, há décadas, exista no bairro um restaurant­e chamado Senzala, palavra associada ao massacre de escravizad­os no Brasil. A escravidão mora ao lado.

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