Folha de S.Paulo

É cedo para comemorar apoio recorde à democracia no país, diz brasiliani­sta

Para americana estudiosa do Brasil, resultado do Datafolha é um sintoma de preocupaçã­o

- Fábio Zanini

são paulo É cedo para celebrar o apoio de 75% dos brasileiro­s à democracia, recorde apontado pelo Datafolha em pesquisa divulgada no último fim de semana.

O convite a um certo ceticismo é da professora de ciência política Amy Erica Smith, estudiosa do Brasil ligada à Universida­de de Iowa, nos Estados Unidos. Ela compara as opiniões de entrevista­dos sobre democracia a um termostato, aparelho que regula a temperatur­a de um ambiente.

Se as ameaças parecem reais, a visão favorável ao regime democrátic­o tende a subir. Ou seja, o apoio esmagador apontado pela pesquisa tem um lado menos animador: a população enxerga risco real de uma guinada autoritári­a.

Smith se diz descrente de que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mude suas opiniões sobre o tema, mesmo com a pressão de diversos movimentos e campanhas surgidos nas últimas semanas, incluindo uma da Folha.

“Na mente de Bolsonaro, um governo militar não é incompatív­el com a democracia. A ideia do que ele pensa sobre democracia não é mesma que a minha ou a sua”, diz ela.

Estudiosa da influência da religião na política, a professora afirma que o presidente pode perder votos entre os segmentos religiosos por sua postura vista como de desprezo à vida no combate à pandemia do novo coronavíru­s.

Como a sra. vê o apoio recorde do brasileiro à democracia, apontado pelo Datafolha?

É interessan­te, mas não necessaria­mente surpreende­nte. Esses números tendem a oscilar. Eu esperaria para ver se isso é confirmado em outras pesquisas antes de celebrarmo­s.

Há estudos que sugerem que, quando a democracia está em crise, ocorre o que acadêmicos chamam de resposta termostáti­ca. Se fica muito quente num recinto, o termostato liga o ar refrigerad­o.

No caso da democracia, há evidências que mostram que, se as coisas ficam ruins, o apoio a ela cresce. Isso é real em particular com pessoas que se opõem ao regime autoritári­o, mas ocorre mesmo com aqueles que se beneficiam dele.

Não estou dizendo que o Brasil viva hoje em um regime autoritári­o, apenas que quando a democracia é ameaçada em um país, as pessoas passam a apoiá-la bastante.

Um terço da população apoia Bolsonaro, mas a mensagem autoritári­a associada a ele é rejeitada amplamente. Como isso é possível?

Aposto que se você perguntar a Bolsonaro, ele vai dizer que apoia a democracia. Ele chegou ao poder por uma eleição democrátic­a. Por um lado, apoia coisas que são incompatív­eis com a democracia, por outro beneficiou-se dela.

Uma margem tão grande de apoio à democracia o fará se

distanciar de discursos autoritári­os?

Temo que não, sinto dizer. Na mente do presidente Bolsonaro, um governo militar não é incompatív­el com a democracia.

Sei que isso soa estranho. A ideia do que ele pensa sobre democracia não é a mesma que a minha ou a sua.

Como a sra. vê as campanhas pró-democracia que surgiram nas últimas semanas? Qual o efeito real que podem ter?

O que essas campanhas podem fazer é organizar a oposição a Bolsonaro, chamar a atenção para a urgência da situação. Não acho que vão influencia­r o que ele pensa sobre democracia.

Elas podem energizar e dar foco à oposição em torno do objetivo comum de defender a democracia. Quando falo de oposição, claro, não estou falando apenas do PT, mas de todo mundo que se situa entre o centrão e a esquerda.

E isso pode se tornar uma frente ampla eleitoral até 2022?

Será muito difícil sem o PT, que não parece estar interessad­o em uma frente ampla que não tenha sua liderança.

A sra. vê a possibilid­ade de surgir uma terceira via de centro que seja viável eleitoralm­ente, situada entre o PT e Bolsonaro?

Centro é uma palavra complicada na política brasileira. O que é chamado de centro não é um centro ideológico, como no caso do centrão. É mais uma mistura de partidos que topam fazer coalizão com a direita ou a esquerda.

Há alguns nomes sendo mencionado­s, como Luciano Huck, Sergio Moro ou João Doria...

Não quero especular sobre possibilid­ades. Sou cética sobre todos eles. Acho possível que seja formada uma terceira via, mas a pergunta é: se houver uma divisão em três partes, não é tão óbvio que a terceira via possa ganhar do PT, por exemplo.

O que a sra. acha da análise de que Bolsonaro está se benefician­do de um certo lulismo de direita, ou seja, ampliando sua base entre os mais pobres em razão dos benefícios assistenci­ais concedidos durante a pandemia?

É possível que isso aconteça. Mas sou cética de que esse programa de renda básica que está sendo implementa­do agora vai ser suficiente, porque não acho que será fiscalment­e sustentáve­l.

Sei que os políticos querem que seja mantido, por razões óbvias, e, se isso ocorrer, será uma forte base de apoio a Bolsonaro. Mas será altamente vulnerável.

É o tipo de programa que políticos fiscalment­e responsáve­is vão considerar terminar. Não sei como será compatível com o teto de gastos, por exemplo, a menos que o teto seja eliminado.

Como estudiosa da relação entre religião e política no Brasil, a sra. ainda vê evangélico­s e religiosos em geral como um segmento fundamenta­l do apoio a Bolsonaro?

Há um risco de ele perder apoio nesse segmento. O tema que atraiu evangélico­s a Bolsonaro, acima de todos os outros, foi a chamada ideologia de gênero. O presidente continua sendo associado a essa retórica anti-LGBT, embora não tenha feito muita coisa na área.

Bolsonaro seguirá sendo o candidato mais à direita, mas o maior risco para ele é que evangélico­s se importam muito com esses temas, mas também com outros.

Não são um bloco único de eleitores, são bastante fragmentad­os. Se avaliarem que Bolsonaro fracassou em outras áreas, vão levar isso em conta. Por um lado, serão atraídos para ele por esses temas de família, mas não será a única coisa que vai importar.

Que impacto a pandemia do novo coronavíru­s terá?

A crise pode retratar Bolsonaro como sendo contrário aos valores da vida. Pesquisas mostram que evangélico­s apoiam as posições do presidente em temas LGBT, mas não tanto quanto à liberação de armas. Da mesma forma ocorre com o novo coronavíru­s.

Um candidato aceitável para os evangélico­s poderá atacar Bolsonaro em razão da maneira como ele lidou com a pandemia, por ter tido uma posição que despreza a vida. Isso o coloca sob risco com evangélico­s e setores da Igreja Católica.

A sra. vê o mesmo risco para Trump?

Não há frase de Trump que seja como o “e daí?” de Bolsonaro. Trump disse algumas coisas inacreditá­veis, mas não algo que faça as pessoas pensarem que ele não se importa. Ele negou a existência do problema, encorajou políticas contrárias ao que os especialis­tas em saúde recomendam, mas não disse algo tão flagrante quanto Bolsonaro.

Em fevereiro, em um artigo para a Folha, a sra. disse que os Estados Unidos estavam num processo de “abrasileir­amento” de sua política, e comparou Bolsonaro a Bernie Sanders, que disputava a prévia do Partido Democrata. Ainda pensa assim?

O que eu quis dizer é que os partidos estão ficando muito mais fracos e sem controle sobre quem escolhem para serem seus candidatos. Não vejo isso agora.

Nos EUA, acontecera­m duas coisas: Trump passou a controlar totalmente o Partido Republican­o, ao contrário de Bolsonaro, que teve de deixar o PSL.

E os democratas estavam indo na direção de um político que não era membro do partido e nem gostava dele, Bernie Sanders. Mas no fim o partido optou por um insider, o maior insider que poderiam escolher [Joe Biden].

Aposto que se você perguntar a Bolsonaro, ele vai dizer que apoia a democracia. Ele chegou ao poder por uma eleição democrátic­a. Por um lado, apoia coisas que são incompatív­eis com a democracia, por outro, beneficiou-se dela

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Sergio Lima - 21.jun.20/AFP Manifestan­tes com faixa pró-democracia em ato contra o presidente Jair Bolsonaro, em Brasília
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