Folha de S.Paulo

Morador de rua vive pandemia de Covid de perto no Pacaembu

Adalberto Ferreira acompanha vaivém de ambulância­s em frente ao Portão 9

- Emilio Sant’Anna e Karime Xavier

SÃO PAULO À sua frente, 14 pombas ciscam no que sobrou do café da manhã/almoço/única refeição do dia. Arroz com feijão. Às suas costas, o Portão 9. Depois dele, cerca de 20 metros de arquibanca­da, a pista e, então, as duas enormes tendas do Hospital de Campanha do Pacaembu.

Àquela altura, na penúltima semana de junho, menos de 20 pacientes estavam internados na estrutura pública administra­da pelo Hospital Israelita Albert Einstein. A capacidade era para atender até 200 pessoas. Em meados de maio, eram 167 internados.

Deitado em seu colchão, caprichosa­mente colocado dia após dia nos últimos oito anos no Portão 9, Adalberto Ferreira, 56, dorme tranquilo. Sem máscara, tosse para cima e se revira no leito. As pombas e os carros que passam pela rua Itápolis não o incomodam. Poucas pessoas caminha por ali. Passos o despertam em um segundo.

Dali, enquanto tenta se proteger do frio, da chuva, do calor do sol, da rara curiosidad­e alheia, o homem acompanhou a pandemia do novo coronavíru­s se espalhar pela cidade de São Paulo, crescer e desembocar em sua casa —desde abril transforma­da em um hospital de guerra construído em tempos de paz.

“Não vai durar mais muito tempo”, disse ele quando a Folha o despertou. “O hospital, ué. Como assim o quê?”

Ninguém havia lhe dito. Ele só percebeu a queda no movimento, medido pelo tráfego menor de ambulância­s entrando e saindo do estádio municipal. Se quando o movimento era maior não teve medo de se contaminar, agora tem ainda menos.

O homem negro e de cabelos brancos faz parte de um dos contingent­es mais expostos ao vírus. Ele diz não saber nada sobre isso, mas faz parte do grupo de risco. Entre os 24.332 moradores de rua de São Paulo, ele é um dos 7.002 com mais de 50 anos.

Até a última semana, segundo a Secretaria Municipal da Saúde, 28 pessoas em situação de rua haviam sido vitimadas pela doença. De março à última sexta (26), 496 passaram pelo Centro de Acolhida para casos suspeitos de Covid-19, e 140 pelo espaço que recebe os casos confirmado­s da doença.

A prefeitura tem seis unidades para moradores de rua com a doença e 33 para casos suspeitos. Para ampliar o acolhiment­o dessa população, a gestão afirma que ampliou o Programa Consultóri­o na Rua de 18 para 25 equipes com enfermeiro­s, assistente social, psicólogo, médico, atendente administra­tivo, agentes sociais e agentes de saúde.

“Deus não deixou doença nenhuma pra gente. Isso tudo é o homem mesmo que causa”, diz Adalberto em tom solene.

Sobre o outro hospital de campanha municipal, no Anhembi, ele diz que só ouviu falar, mas sabe que por lá o movimento é maior.

Na última semana, a unidade da zona norte tinha pouco mais de 200 pacientes. Com capacidade para 871 pessoas, o pico se deu também em meados de abril, quando chegou a ter 601 internados.

São 15h, o sol vai alto e o dia —o primeiro do inverno— está apenas começando. Sentado em seu colchão, de camiseta e bermuda, Adalberto repassa os compromiss­os daquele sábado (20).

Levantar-se —o que vai levar mais cerca de 20 minutos— varrer seu quarto sem paredes e com vista para os enormes casarões do bairro, recolher sua cama e suas roupas e levá-los para o “armário”, um saco plástico preto enfiado em meio a uma cerca viva do outro lado da rua.

Depois, ainda tem o banho. Assim que conseguir juntar R$ 15, ele toma. Para isso, tem que andar até a avenida Brigadeiro Luiz Antônio, no centro. Uma pensão, explica. Passar a noite é mais caro, não sabe quanto. Não precisa.

Por volta das 19h, Adalberto sai para recolher material reciclável. A caminhada vai madrugada adentro. Duas ou três vezes por semana, vai à Barra Funda vender o que encontra.

Lá pelas 4h, retorna para o portão do estádio, tira o colchão e as roupas do “armário” e vai pra cama. Se tiver leite, junta uns gravetos, acende uma fogueira e esquenta numa panelinha antes de dormir.

Adalberto não é o único a buscar abrigo por ali. Mas é o mais frequente. Raramente dorme em outro lugar. Raramente está completame­nte só. Seguranças dos escritório­s ainda instalados nos casarões, vigias noturnos e moradores do bairro fazem parte de seu círculo de conhecidos.

Quem trabalha por ali diz que todos na região conhecem Adalberto e sabem que ele é extremamen­te organizado e mantém o local limpo.

O morador do Portão 9 diz que se esforça para deixar tudo em ordem. Reconhece o valor de se relacionar bem com os vizinhos, mas diz que amizade é coisa difícil de se conseguir morando na rua.

“Amigo meu sou eu mesmo. Eu pensava que meus melhores amigos eram meus dentes, mas até eles me abandonara­m” diz, abrindo o sorriso quase sem companheir­os.

Os dentes o lembram da avó, benzedeira em Ribeirão Preto, onde nasceu. “Não dói quando vai cair. Vovó me ensinou uma simpatia. É só prender uma fita no pulso com um dente de alho cortado em cruz. Mata a raiz”, explica. “Ela morreu acho que foi em 2017.”

Falar da avó o lembra da mãe. “Mamãe se foi em 2011, ou 2012...Foi a última vez que fui pra Ribeirão Preto. Isso, no enterro dela”, diz. “O pessoal me ajudou e fui de ônibus.”

A mãe o lembra dos filhos. Seis. “Estão com uma tia lá no interior. Bate uma saudade... Qualquer hora vou pra lá”, divaga. “Estamos numa situação caótica aqui. Não vou ficar no meio dessa confusão.”

Por enquanto não há sinal de que ele vá mesmo deixar a capital. Nesta segunda-feira (29), quando o Hospital de Campanha do Pacaembu for desmontado pela prefeitura, Adalberto deve continuar no Portão 9. De madrugada, se tiver um litro de leite, talvez acenda uma fogueira.

 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? Adalberto Ferreira, 56, descansa em sua cama em frente ao Portão 9 do estádio do Pacaembu
Karime Xavier/Folhapress Adalberto Ferreira, 56, descansa em sua cama em frente ao Portão 9 do estádio do Pacaembu

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil