Série sobre João de Deus, preso por abuso sexual, revela lado sombrio dos brasileiros
No dia 8 de dezembro de 2018, o talk show “Conversa com Bial” exibiu uma edição que entrou para a história. Pedro Bial entrevistou a coreógrafa holandesa Zahira Mous e a americana Amy Biank, que trabalhava como guia para seus conterrâneos em visita a Abadiânia, no estado de Goiás.
A conversa foi entremeada por depoimentos de brasileiras que preferiram não se identificar. O assunto da edição eram os abusos sexuais cometidos por João de Deus.
Até então, ele era quase uma unanimidade. Políticos, estrelas da TV e anônimos acudiam à Casa de Dom Ignácio de Loyola, a instituição que ele mantinha, em busca de cura para males físicos e espirituais.
Aquele episódio detonou o império de João de Deus. Dezenas, depois centenas de outras mulheres vieram a público com novas denúncias. Alguns casos remontavam a mais de quatro décadas. A polícia entrou em cena e o médium foi preso e condenado a 40 anos de reclusão.
Hoje, um ano e meio depois, João de Deus está em prisão domiciliar, por causa da pandemia do novo coronavírus.
Nesse meio tempo, a equipe do “Conversa com Bial” se aprofundou ainda mais na história do autoproclamado vidente. Havia muitas perguntas não respondidas. Como
João de Deus conseguiu permanecer impune por tanto tempo? Outras mulheres já o haviam denunciado antes —por que só agora essas acusações foram levadas a sério?
O resultado é a minissérie documental “Em Nome de Deus”, em seis episódios, conduzida pelo próprio Bial e roteirizada pelos jornalistas Camila Appel, que também é colaboradora deste jornal, e Ricardo Calil. Este também assina a direção, junto de Giancarlo Bellotti e Mônica Almeida.
Ainda estou sob o impacto da história de terror que é contada ali. Por várias razões, a trajetória de João de Deus só poderia ter se dado no Brasil. Diversos traços do nosso caráter nacional se combinaram numa tempestade perfeita, produzindo uma autêntica “Brazilian horror story”.
“Há algo de muito errado no nosso contrato social”, disse Bial durante uma entrevista coletiva por videoconferência. “Os brasileiros estão sempre em busca de um herói, um salvador da pátria. É uma herança cultural do sebastianismo português. Também ainda temos resquícios do coronelismo, que vem do século 19. João de Deus andava armado. Agora ele está em prisão domiciliar, e suas vítimas estão alarmadas.”
É difícil explicar o medo que João de Deus incutia. Algumas temiam até mesmo represálias espirituais. Acreditavam, por exemplo, que se denunciassem os estupros, seus parentes adoeceriam.
Tampouco podemos esquecer que vigora no Brasil um sistema de descrédito às vítimas de violência sexual. Algumas já haviam acusado João de Deus, mas ele sempre foi inocentado. É sintomático que a primeira mulher que concordou em vir a público e se identificar fosse uma estrangeira, a holandesa Zahira Mous —e mesmo ela relutou muito.
“Em Nome de Deus” traz muitas revelações chocantes, mesmo para quem o caso não era novidade. Entre os muitos depoimentos inéditos está o de Dalva, filha de João de Deus, a quem ele abusava desde que ela tinha dez anos. Ainda mais escabroso é o caso de Maria, a quem João teria tentado matar com pedras e tiros depois de a ter violentado, quando ela era virgem.
Produzida com rigor jornalístico e delicadeza no trato com as vítimas, “Em Nome de Deus” não fica a dever às séries documentais sobre crimes, gênero que se tornou muito popular com o advento do streaming.
A sensação que fica é a de que João de Deus é só mais um vulto do lado mais sombrio do Brasil. Um lado violento, machista, racista, homofóbico e atrasado. Que sempre esteve aí como pano de fundo. Mas que, de uns tempos para cá, passou para o primeiro plano e agora parece nos sufocar.
Em Nome de Deus
Disponível no Globoplay