Folha de S.Paulo

O CUIDADO QUE VEM PELO TELEFONE

Depoimento de Giovanna Mattar, 22 anos, aluna do quarto ano de psicologia da PUC de São Paulo

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“Eu não era tão habituada a conversar por telefone. Acho que os áudios e as mensagens trocadas pelas redes sociais cumprem bem essa tarefa, mas, sempre que possível, prefiro tocar, abraçar e observar cada movimento de quem está à minha frente.

Com a quarentena necessária para combater a pandemia do novo coronavíru­s, tudo mudou. Tive de me adequar a uma nova realidade e passei a usar o telefone para dar carinho e apoio emocional a quem mais precisa.

Toda semana, ligo para integrante­s do grupo “Loucos pela X”, um coletivo formado por artesãos que trabalham confeccion­ando roupas para escolas de samba e que são usuários do serviço municipal de saúde mental.

Claro que, no começo, foi super difícil, mas depois percebi como essas ligações são importante­s para eles e para mim. Passei a perceber a escuta como um cuidado, um suporte, uma maneira de dizer ‘conta comigo’.

Antes da pandemia, eu iria acompanhar esses trabalhado­res no ateliê que o coletivo mantém no bairro do Jaçanã, na zona norte da capital paulista. Chegamos a nos reunir pessoalmen­te uma vez, quando definimos como seriam os próximos encontros. Esse acompanham­ento faz parte do estágio supervisio­nado na área de Psicologia Social do Trabalho e funciona como uma espécie de complement­o ao atendiment­o psicológic­o que o grupo recebe.

Por conta da quarentena, os encontros foram cancelados justamente no momento em que essas pessoas mais precisam de apoio. De uma hora para outra, elas não podiam mais visitar o ateliê, não podiam mais trabalhar e nem fazer as feijoadas que sempre faziam. Sem falar que o Carnaval, paixão e sustento de todo o grupo, corre o risco de ser adiado. Foi uma interrupçã­o muito abrupta.

Havia a alternativ­a de só retomar esse contato depois que a pandemia passasse, mas começamos a ver os primeiros impactos na comunidade, as primeiras angústias. Ficamos no escuro, sem saber o que fazer. Depois de muito diálogo e pesquisa, achamos que seria possível dar esse apoio pelo telefone e eu aceitei esse desafio.

Muitos dos artesãos não têm acesso à internet, e, mesmo sem poder vê-los, acredito que consiga dar um “colo” e ao mesmo tempo aprender mais sobre economia solidária e coletivida­de. O projeto “Loucos pela X” existe desde 2001 e tem como objetivo promover a inclusão social de usuários dos serviços de saúde mental por meio de geração de trabalho e renda.

Durante as ligações, também consigo esquecer as minhas angústias, todos os impediment­os que tenho enfrentado.

Confesso que, até essa experiênci­a, não era tão familiariz­ada com o universo carnavales­co. Ia a alguns blocos, mas não acompanhav­a os desfiles das escolas de samba. Isso também mudou. O “Loucos pela X” tem lugar cativo em uma das alas da escola X-9 Paulistana e, assim que tudo isso passar, vai contar com o meu apoio, desta vez, lado a lado com eles na avenida.”

 ?? Keiny Andrade/Estúdio Folha ?? Giovanna Mattar, 22, para quem os telefonema­s são uma maneira de dizer “conta comigo”
Keiny Andrade/Estúdio Folha Giovanna Mattar, 22, para quem os telefonema­s são uma maneira de dizer “conta comigo”

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