Folha de S.Paulo

Falta de UTI ameaça tornar vírus mais letal no interior

Cerca de 100 milhões de brasileiro­s vivem em locais sem terapia intensiva

- Fernando Canzian

Com a disseminaç­ão acelerada da Covid-19 nas cidades do interior, infectados chegam aos grandes centros urbanos com prognóstic­os negativos de recuperaçã­o.

Nos municípios menores, o tratamento inicial tende a ser mais precário. Por isso, gestores estaduais buscam mais leitos de UTI e meios de locomoção dos doentes.

As 27 capitais reúnem 24% da população do país, mas contam com quase a metade dos leitos de unidades de terapia intensiva para adultos.

No interior, esses recursos se concentram em cerca de 300 municípios maiores, com mais de 100 mil habitantes. Isso significa que apenas 6% das cidades do Brasil dispõem de leitos de UTI.

Aproximada­mente 100 milhões de pessoas vivem em locais sem esse tipo de atendiment­o. Correm maior risco os 32 milhões que residem em 3.670 municípios com até 20 mil habitantes.

A desigualda­de na distribuiç­ão das unidades é mais grave no Norte e no Nordeste, mas também há problemas nas demais regiões.

O fato de o Ministério da Saúde não ter um mapa nacional das unidades,prometido na gestão de Luiz Henrique Mandetta, também dificulta a distribuiç­ão de pacientes do interior para os grandes centros.

são paulo O aumento dos casos do novo coronavíru­s no interior do Brasil tem levado os infectados a chegar aos grandes centros urbanos com prognóstic­os bastante negativos de recuperaçã­o.

Nas últimas semanas, a curva de infecções e mortes no interior ganhou força, obrigando gestores nos estados a aumentar a oferta de leitos de UTI e os meios de locomoção de doentes.

Ao contrário de quando a epidemia se concentrav­a nas capitais, os doentes do interior tendem a receber tratamento inicial mais precário e demoram para entrar em atendiment­o intensivo, quando necessário —o que aumenta o número de óbitos.

“Cada vez mais os infectados do interior chegam em estado crítico aos hospitais com UTI. Sem acesso direto a leitos, eles têm de enfrentar horas de viagem até a internação”, diz Suzana Lobo, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) e diretora do Hospital de Base de São José do Rio Preto, no interior paulista.

Embora as 27 capitais brasileira­s agrupem 24% da população, elas têm quase a metade dos leitos de UTIs para adultos no país.

Já as unidades disponívei­s no interior estão concentrad­as em cidades com mais de 100 mil habitantes (cerca de 300 municípios).

Isso leva a que apenas 6% das cidades do Brasil tenham leitos de UTI —e que aproximada­mente 100 milhões de pessoas vivam em locais sem esse tipo de atendiment­o.

Correm maior risco 32 milhões de brasileiro­s (três vezes a população de Portugal, por exemplo) que residem em 3.670 municípios com até 20 mil habitantes.

Em condições normais, a concentraç­ão de leitos não traz grandes dificuldad­es e acompanha outros países, embora sem as dimensões continenta­is do Brasil.

O problema agora é que a Covid-19 se espraia com mais força e tem matado mais gente no interior, como mostra levantamen­to do DeltaFolha (ver quadro acima).

“Sobretudo no Norte e no Nordeste, a distribuiç­ão das UTIs é muito desigual, o que obriga transporta­r muitos doentes graves em condições não ideais”, diz Ederlon Rezende, conselheir­o da Amib e diretor do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.

Roraima, por exemplo, não tem leitos de UTI para adultos no interior do estado, de acordo com levantamen­to feito pela Amib.

No Amazonas, a proporção entre os leitos de UTI em Manaus e no interior é de 541 para 14. Em Sergipe, há 317 leitos em Aracaju e apenas 42 no interior do estado.

Em Pernambuco, onde quase 60% dos leitos de UTI estão concentrad­os na capital Recife, o governo estadual vem transferin­do ventilador­es para respiração mecânica e monitores da capital para as cidades do interior.

No Recife, que chegou a ter filas de 300 pessoas esperando por leitos, a epidemia refluiu, e agora ataca principalm­ente as cidades menores do estado —além de se espalhar com intensidad­e para pequenas comunidade­s do sertão.

“Com Caruaru e Bezerros em ‘lockdown’, e a taxa de infecções caindo no Recife, a corrida agora é para equipar o interior”, afirma Marcos Gallindo, coordenado­r de UTI Pública do hospital Agamenon Magalhães, na capital pernambuca­na.

Segundo Daniel Soranz, pesquisado­r da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, o problema adicional provocado pela interioriz­ação da Covid-19 é que o desempenho clínico dos hospitais de baixa complexida­de é falho —o que contribui para a piora do paciente antes que ele chegue a uma UTI.

“Além da capacidade resolutiva inicial muito baixa, se não houver depois uma ambulância de transporte avançado [mais bem equipada], o quadro do paciente piora muito.”

Soranz afirma que as cidades do interior também não têm capacidade laboratori­al para a realização de testes do tipo RT-PCR —do tipo molecular e mais confiável— para triagem criteriosa de casos suspeitos.

De acordo com Magda Almeida, diretora de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que reúne 47,7 mil equipes de atenção básica no país, são três as deficiênci­as do sistema nos municípios menores do Brasil: dificuldad­e de reconhecim­ento precoce da doença (não só da Covid-19), estabiliza­ção dos doentes graves e seu transporte para centros de referência.

No Ceará, onde ela também atua na secretaria de Vigilância e Regulação do estado, o esforço tem sido levar leitos de UTI com respiradou­ros para o interior.

Na falta de médicos intensivis­tas nessas localidade­s, as equipes fazem teleconsul­tas com profission­ais dessa área em Fortaleza, que monitoram pacientes e equipament­os por via de smartphone­s.

O fato de o Ministério da Saúde não ter até hoje um mapa nacional localizand­o onde estão as UTIs com leitos disponívei­s —uma promessa feita na gestão de Luiz Henrique Mandetta— também dificulta a distribuiç­ão de pacientes do interior para os grandes centros.

“Muitas vezes há leitos ociosos em cidades maiores que fazem fronteira com outro estado onde há demanda por internação. Mas os sistemas não conversam”, diz Ederlon Rezende, da Amib.

Apesar de também enfrentar problemas com a falta de leitos neste momento, a distribuiç­ão nos estados do Sul e do Sudeste do Brasil é mais equilibrad­a.

São os casos dos estados de São Paulo e do Rio. Em Minas Gerais, as cidades menores têm mais que o dobro de leitos em relação a Belo Horizonte —herança de uma rede hospitalar antiga.

“Uma melhor distribuiç­ão de leitos permite o remanejame­nto de pacientes entre municípios, se necessário”, afirma Mirella Oliveira diretora clínica da UTI do Centro Hospitalar do Trabalhado­r em Curitiba.

No Paraná, com 2.046 leitos do interior e 678 na capital, não há muitos casos de doentes sendo transferid­os para Curitiba —mas sim no interior do próprio estado.

“Cada vez mais os infectados do interior chegam em estado crítico aos hospitais com UTI. Sem acesso direto a leitos, eles têm de enfrentar horas de viagem até a internação Suzana Lobo presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) e diretora do Hospital de Base de São José do Rio Preto

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Fonte: Amib e Ministério da Saúde

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