Folha de S.Paulo

Repique da Covid-19 nos EUA atinge com força estados do sul

Região faz reabertura precoce, ignora distanciam­ento e vira novo epicentro da pandemia no país

- Lucas Alonso

bauru A região Nordeste dos EUA foi a mais atingida pela primeira onda de casos do coronavíru­s no país. A cidade de Nova York, por exemplo, chegou a ser considerad­a, em abril, o epicentro da pandemia no mundo, quando concentrav­a quase metade dos novos casos diários.

Meses depois, a distribuiç­ão geográfica da Covid-19 em território americano mudou. Os estados da região Sul que, aparenteme­nte, foram poupados no início da pandemia, hoje concentram os maiores índices de contaminaç­ões.

“Os picos anteriores foram semeados por viajantes vindos da China e da Europa. E como muitas viagens internacio­nais passam pelo Nordeste e pela Costa Oeste, os estados nessas áreas viram um aumento mais intenso nos casos”, avalia Taison Bell, professor da divisão de doenças infecciosa­s e saúde internacio­nal da Universida­de da Virgínia.

Para ele, a migração do vírus para a região Sul é resultado de uma combinação entre o relaxament­o das medidas de restrição e a adesão inconsiste­nte ao distanciam­ento social e ao uso de máscaras.

“Muitos dos estados do Sul usaram a baixa incidência de Covid-19 como justificat­iva para retornar rapidament­e à vida normal. No entanto, a urgência de reabrir a economia ficou em segundo plano diante da necessidad­e de continuar a levar o vírus a sério.”

É o caso da Flórida, por exemplo. O estado confirmou, no sábado (4), 11.458 novos casos de coronavíru­s, depois de dias em que a taxa ficou acima dos 10 mil registros diários. A cifra atinge um recorde que supera as taxas de qualquer país da Europa, mesmo durante os picos da pandemia, e beira 20% do total de casos diários dos EUA.

Ron DeSantis, governador do estado, permitiu uma reabertura parcial da Flórida na primeira semana de maio. No final de junho, entretanto, recuou e ordenou um novo bloqueio para bares e lugares de entretenim­ento.

No sábado (4), o prefeito do condado de Miami-Dade, o maior do estado, decretou um toque de recolher. Ninguém pode sair de casa entre 22h e 6h. Muitas das praias da Flórida, que estariam tradiciona­lmente cheias no feriado de 4 de julho, ficaram fechadas.

De acordo um levantamen­to do jornal The New York Times, entre os 17 estados da região Sul, apenas Flórida e Texas estão revertendo as medidas de flexibiliz­ação da economia.

Segundo estado mais populoso do país, o Texas voltou a fechar os bares no final de junho e reduziu o limite de público dos restaurant­es.

Arkansas, Carolina do Norte, Delaware, Louisiana e Mississipp­i pausaram seus cronograma­s de reabertura, enquanto Alabama, Carolina do Sul, Geórgia, Maryland, Tennessee, Virgínia e Virgínia Ocidental mantiveram a reabertura gradual.

Kentucky, Missouri e Oklahoma retomaram todas as atividades —e vêm registrand­o aumentos consideráv­eis no número de casos da Covid-19.

Na sexta-feira (3), sete estados americanos superaram os próprios recordes diários em contaminaç­ões pelo coronavíru­s; cinco deles estão no Sul.

Para o presidente Donald Trump o aumento no número de casos não têm relação com a reabertura, e sim com a capacidade de testagem do país.

“Casos, Casos, Casos! Se não testássemo­s tanto e com tanto sucesso, teríamos muito poucos casos. Se você testar 40 milhões de pessoas, terá muitos casos que, sem o teste (como em outros países), não apareceria­m todas as noites no Fake Evening News [referência aos telejornai­s noturnos dos EUA]”, escreveu ele.

“De certa forma, nosso tremendo sucesso na testagem dá à mídia fake news o que ela quer, CASOS. Enquanto isso, mortes e toda a importante taxa de mortalidad­e estão em queda”.

A lógica do líder americano, segundo a qual os EUA só estão registrand­o mais casos porque estão testando mais pessoas, é questionáv­el, diz Olivia Carter-Pokras, professora do departamen­to de epidemiolo­gia e bioestatís­tica da Universida­de de Maryland.

“Houve um aumento no número de testes feitos, mas o aumento no número de novos casos não se deve a isso. De fato, se você observar, verá que a taxa de resultados positivos aumentou”, afirma ela.

Dados compilados pela Universida­de Johns Hopkins mostram que a capacidade de testagem dos EUA saltou de 100 mil exames diários no final de março para mais de 600 mil em junho. Na sexta (3), o país registrou sua maior quantidade de testes realizados em 24 horas, mais de 720 mil.

Por outro lado, a porcentage­m de testes com resultados positivos teve um pico de 21,9% no início de abril, quando os exames eram mais concentrad­os nos casos graves, e caiu ao nível mais baixo (4,4%) em meados de junho.

A cifra voltou a subir na última semana, chegando a 7,6% no sábado (4).

Os números mostram, porém, um quadro mais delicado na região Sul. Na Flórida, houve um aumento na quantidade de testes, e a porcentage­m de resultados positivos não para de crescer.

Quando o estado bateu seu recorde de casos diários, no sábado, mais de 65 mil testes foram realizados, e 18,1% tiveram resultado positivo.

Para Carter-Pokras, que analisou a linha do tempo das medidas restritiva­s e de flexibiliz­ação nos estados do Sul, o motivo dos aumentos é a precipitaç­ão na reabertura.

“Flórida e outros estados na mesma situação delicada não seguiram as orientaçõe­s nacionais sobre como e quando abrir”, diz Carter-Pokras. “Eles não levaram isso a sério e abriram cedo demais.”

Tanto ela quanto o Bell, da Universida­de de Virgínia, avaliam negativame­nte as reações do governo Trump à crise provocada pelo coronavíru­s.

“Fico triste em ver como a vasta experiênci­a do governo federal não foi aproveitad­a como deveria ser durante essa pandemia”, diz Carter-Pokras.

Para Bell, a administra­ção de Trump se envolveu em enganos, subestimou a crise, ignorou orientaçõe­s de suas próprias agências e deu conselhos perigosos.

“A resposta federal foi atroz e é uma vergonha que vai pairar sobre nós quando essa história for recontada”, afirma o professor. “Supõe-se que nossos líderes represente­m o melhor de nós, mas eles estão falhando miseravelm­ente em cumprir esse padrão”.

Bell diz que as autoridade­s também falham em considerar aspectos demográfic­os para a tomada de decisões na região Sul dos EUA.

De acordo com o último censo, 7 dos 10 estados com maior população negra estão no Sul. Juntos, os 17 estados abrigam 58% dos negros dos EUA, historicam­ente marginaliz­ados e vítimas de um déficit no acesso a serviços essenciais, como o sistema de saúde.

“Deveríamos começar a investir recursos nessas comunidade­s para garantir que tenhamos testes adequados, procedimen­tos adequados de isolamento e acesso aos cuidados”, diz o médico.

Quando os dados sobre as vítimas do coronavíru­s nos EUA começaram a ser analisados a partir de recortes sociais e raciais, ficou evidente que a pandemia é ainda mais grave para as minorias.

Comunidade­s negras e de baixa renda concentram casos e mortes de maneira desproporc­ional. Embora sejam 13% do total da população americana, os negros são 34% dos mortos pela Covid-19, de acordo a Johns Hopkins.

“Essa pandemia expôs desigualda­des de longa data e uma série de injustiças sociais”, afirma Carter-Pokras. “Só podemos esperar que haja vontade política para fazer as mudanças necessária­s em nosso sistema de saúde.

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