Folha de S.Paulo

PL das fake news atinge privacidad­e, diz relator da ONU

David Kaye critica rastreabil­idade ao WhatsApp proposta no texto que será votado na Câmara

- Paula Soprana

David Kaye, relator da ONU para a liberdade de expressão, afirma que o direito à privacidad­e não foi devidament­e considerad­o no projeto de lei das fake news. Segundo ele, há potencial para fragilizar o debate público.

SÃO PAULO A tramitação do projeto de lei das fake news no Congresso, que avança há dois meses e deve ser votado nas próximas semanas na Câmara dos Deputados, chamou a atenção da ONU, que emitiu alerta à missão brasileira em Genebra com preocupaçõ­es sobre a rapidez do processo e os riscos à privacidad­e e à liberdade de expressão.

David Kaye, 51, que ocupa desde 2014 a relatoria especial das Nações Unidas para a proteção da liberdade de expressão, afirma que o direito à privacidad­e não foi devidament­e considerad­o pelo projeto.

Ele diz que o Brasil pode ser um dos primeiros países democrátic­os a adotar uma medida de rastreabil­idade em serviços de mensagem, o que fragiliza o debate público e promove a autocensur­a.

“Se as pessoas pensam que o fato de compartilh­arem informaçõe­s as tornará rastreávei­s, o direito de privacidad­e já foi afetado”, afirma.

O projeto de lei, que já teve cinco redações oficiais, determina que serviços de mensagem privada (como WhatsApp e Telegram) guardem registros (os metadados, como usuário, data e horário de envio) de mensagens veiculadas em “encaminham­entos em massa” por três meses.

A ideia de um dos artigos é criar uma cadeia rastreável para que seja possível chegar à origem de uma notícia falsa —embora o debate seja povoado por confusões sobre o conceito de desinforma­ção e fake news. Para o relator da ONU, é preciso ter clareza sobre o problema a ser atacado.

Existe obrigação legal de manter metadados de rastreabil­idade em algum lugar do mundo? Vários lugares têm essas políticas de retenção e alguns governos tentaram fazer isso com serviços de mensagens, por exemplo a Índia. Houve um esforço nesse sentido que não avançou, então isso seria algo muito novo para países democrátic­os. O primeiro ponto disso é que só será possível a companhias como WhatsApp, que tem o suporte do Facebook. Se há preocupaçã­o com o poder de companhias, não faz sentido adotar essa medida. A rastreabil­idade é uma interferên­cia evidente à privacidad­e de todas as pessoas que recebem e compartilh­am mensagens.

Um dos valores de serviços como WhatsApp é que permitem às pessoas compartilh­ar informaçõe­s não exatamente de forma anônima, mas muito próxima disso. Isso é importante para o debate público e para a liberdade de expressão. Se as pessoas pensam que o fato de compartilh­arem informaçõe­s as tornará rastreávei­s, o direito de privacidad­e já foi afetado.

Um grupo de 256 pessoas, máximo permitido pelo WhatsApp, pode ser caracteriz­ado

como conversa privada? Esse é um lugar arbitrário para sugerir se algo é público ou privado. E se o grupo envolver discussão sobre questões de gênero e as pessoas estiverem, de forma legítima, reticentes por terem identidade­s evidenciad­as, pois poderiam ser alvo de discrimina­ção?

O grupo fornece um local para que eles discutam, compartilh­em informaçõe­s. Simplesmen­te porque são 256, ele perde sua proteção de privacidad­e? Acho que, em geral, é uma maneira arbitrária de tomar decisões sobre as proteções que todos devem ter.

Há outro caminho para conter o avanço da desinforma­ção que não seja buscando a origem de um conteúdo? Existe um modelo que combine liberdade de expressão e combate à desinforma­ção? Há muitos modelos que podemos citar de Estados que conseguem tratar a desinforma­ção de forma efetiva, e é um pouco o que parte desta lei propõe. Uma é transparên­cia da plataforma. Essa lei tem bons mecanismos sobre transparên­cia. A plataforma tem que ser clara sobre como avalia informação e sobre como permite que as pessoas compartilh­em uma informação.

O que pode ser feito no âmbito federal para combater a desinforma­ção? O governo tem a responsabi­lidade de proteger contra a desinforma­ção e obrigação de proteger a saúde pública, por exemplo. O problema é que a desinforma­ção é frequentem­ente algo que o próprio governo faz. Em alguns sentidos, o que esse projeto de lei das fake news está tentando fazer é atacar um problema que não será suscetível ao regime legal.

O que você realmente precisa é que o governo faça duas coisas: diga a verdade às pessoas e garanta que a população tenha acesso à mídia independen­te. Sanção e violação de privacidad­e estão mais propensas a empurrar o problema para baixo do tapete.

O Brasil tem uma rica sociedade civil de acadêmicos, ativistas e legislador­es que trabalhara­m juntos por muitos anos para criar o Marco Civil da Internet e isso poderia ser feito agora —não precisam ser anos, claro, mas essa lei parece ter se desenvolvi­do de maneira muito rápida sem considerar grande parte dos riscos, como de privacidad­e e liberdade de expressão. Uma das formas mais importante­s de combater a desinforma­ção é ter uma imprensa independen­te.

A ONU tem uma definição para desinforma­ção? Não há definição da ONU para desinforma­ção e por uma boa razão. Em primeiro lugar, leis de direitos humanos e leis internacio­nais protegem o direito de todos de procurar, receber e compartilh­ar informaçõe­s de todo tipo, não limita o que pode ser considerad­o verdadeiro ou não.

O sr. mencionou o processo de construção do Marco Civil. Na época, a esquerda era favorável. Na lei debatida agora, o PT apoiou no Senado, enquanto acadêmicos, ativistas e organizaçõ­es de direitos criticam vários pontos. Bolsonaro disse que pode vetar trechos. É um cenário político que dificulta a compreensã­o do público… O fato de tantos acadêmicos, ativistas e organizaçõ­es especializ­adas terem sérias preocupaçõ­es sobre essa legislação deveria indicar para as pessoas que ao menos parem e pensem sobre a lei antes de apoiá-la. É completame­nte compreensí­vel as pessoas estarem ansiosas sobre a desinforma­ção. Só que essa legislação específica não está resolvendo o problema.

Eu diria: não vamos adotar essa legislação agora, vamos estudar, colocar sob consulta pública. E já que o governo propõe consulta popular para essa lei agora, poderia ampliar essa iniciativa para todo tipo de legislação.

Existe uma insatisfaç­ão de governos com empresas de tecnologia por questões diversas: desinforma­ção, discussão sobre monopólio, proteção de dados, entre outras. Como tornar esse debate mais organizado à sociedade?

O que vemos são diferentes atores políticos e econômicos tendo um papel em decidir como regular essas grandes companhias e é definitiva­mente confuso. Quando pensamos sobre discurso de ódio, desinforma­ção ou informaçõe­s sobre a Covid, a grande pergunta é: quem deve decidir? Quem deve decidir qual conteúdo é legítimo ou não em plataforma­s? As companhias baseadas em interesses econômicos e de marketing? Os anunciante­s, tomando decisões sobre onde colocam o dinheiro? Os governos, criando leis sobre conteúdos?

E quem deve decidir na opinião do senhor? Na minha visão, é necessário ter uma combinação de regulação de governo focada em transparên­cia e prestação de contas de empresas, mas não uma regulação sobre qual conteúdo é legítimo e qual não é —com exceção do que já é ilegal, como exploração sexual infantil e terrorismo.

Qual a opinião do sr. sobre o Facebook manter a controvers­a publicação de Donald Trump [no início dos protestos antirracis­tas, o presidente americano disse que “quando começam os saques, começam os tiros”]? O Facebook tem regras contra incitação à violência e o post de Trump violou aquela regra. A questão é: existe algum tipo de tratamento diferencia­do que deve ser dado a alguém como Trump, Bolsonaro ou outras autoridade­s?

Nesse caso particular, parece que o Facebook foi influencia­do pela conversa de Zuckerberg com a Casa Branca. O Facebook tem uma série de ferramenta­s, assim como Twitter e Youtube, que pode tornar conteúdos mais difíceis de serem compartilh­ados. O algoritmo pode decidir que algo não aparece no feed, podem colocar rótulos de alerta, como o Twitter fez. O Facebook agora tomou decisões mostrando que deve ir nessa direção.

Como encara movimentos ativistas como o Stop Hate From Profit (de boicote ao Facebook) e o Sleeping Giants (que alerta empresas sobre anúncios em sites que propagam

ódio ou notícias falsas)? São exemplos das pessoas usando a liberdade de expressão e o direito de protestar. O direito de boicotar e demandar boicote é um direito fundamenta­l de liberdade de expressão. Não acho que boicote substitui a política pública. No fim, ainda precisamos de regulação governamen­tal, particular­mente em questões de transparên­cia e via processos democrátic­os.

“É completame­nte compreensí­vel as pessoas estarem ansiosas sobre a desinforma­ção. Só que essa legislação específica não está resolvendo o problema

Ministros, parlamenta­res, Trump e Bolsonaro usam as redes sociais para anúncios oficiais diários. Eles podem bloquear as pessoas? Não, acho que não podem estar aptos a bloquear. Uma coisa é você ser um indivíduo, sujeito a abusos nas redes sociais, e decidir bloquear. Mas se você é governante e está usando a plataforma para disponibil­izar informaçõe­s públicas, quando bloqueia, diz: você não tem acesso a essa informação governamen­tal. É fundamenta­lmente injusto e inconsiste­nte com a liberdade de informação.

 ?? Divulgação ?? David Kaye, 51 É relator especial da ONU para a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião desde 2014. Especialis­ta em direito internacio­nal público, direito internacio­nal humanitári­o, direitos humanos e justiça criminal internacio­nal, é professor de direito na Universida­de da Califórnia, Irvine
Divulgação David Kaye, 51 É relator especial da ONU para a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião desde 2014. Especialis­ta em direito internacio­nal público, direito internacio­nal humanitári­o, direitos humanos e justiça criminal internacio­nal, é professor de direito na Universida­de da Califórnia, Irvine

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil