Folha de S.Paulo

Padres negros relatam racismo na igreja

Pastoral Afro-Brasileira estima que 2,7% dos religiosos no país sejam negros

- Matheus Moreira

Padres negros denunciam casos de racismo na Igreja Católica e citam conivência com escravidão e racismo estrutural, além do difícil acesso a postos de destaque.

são paulo No dia 7 dezembro de 2010, o padre Geraldo Natalino, conhecido como padre Gegê, foi selecionad­o para ser professor na Comissão de Cultura Religiosa da unidade da Gávea da PUC no Rio de Janeiro. Ele nunca assumiu o cargo e alega ter sido impedido pelo então bispo auxiliar e responsáve­l pela universida­de sem jamais receber uma justificat­iva.

Padre Gegê, responsáve­l pela Paróquia Santa Bernadete, em Manguinhos (RJ), é negro. Dom Paulo César, o então bispo auxiliar e hoje bispo da diocese de São Carlos (SP), é branco.

O caso veio à tona após o mundo assistir, pela tela do celular, ao assassinat­o de George Floyd por um policial branco nos EUA. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas não só nos Estados Unidos, mas também na Europa e na América do Sul contra o racismo estrutural.

Sob o intenso debate que o mês de protestos pelo mundo causou, padre Gegê decidiu expor suas cicatrizes. Dez anos depois de ser impedido de assumir o cargo na universida­de, o padre contou em texto publicado em redes sociais do racismo de que foi alvo na igreja ao longo de 26 anos.

A situação relatada pelo padre é fruto de uma história de conivência com a escravidão e de racismo estrutural, segundo padres ouvidos pela Folha. Uma das consequênc­ias do racismo na igreja é a dificuldad­e de acesso de religiosos negros a posições de destaque ou cargos altos.

Atualmente há padres e bispos negros na igreja brasileira; não é possível dizer ao certo quantos são, porém, porque não há dados quantitati­vos atuais sobre o assunto. Segundo a assessoria de imprensa da CNBB (Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil), o Anuário Católico do Brasil, que conta com um censo dos religiosos da instituiçã­o, não será publicado em 2020.

Questionad­a sobre o registro mais recente, de 2015, a assessoria da instituiçã­o informou que não seria possível compartilh­ar as informaçõe­s devido ao home office causado pela pandemia.

Em um país onde 56% da população se declara negra (preta ou parda), segundo o IBGE, a Pastoral Afro-Brasileira da CNBB estima que apenas 2,7% dos padres sejam negros.

Isso quer dizer que, dos 14 mil padres no Brasil, os negros somam 380. A situação se repete entre os prelados negros, que são 7,6%, ou 37 de 483. Prelados são autoridade­s da igreja, como cardeais, bispos e arcebispos. No Brasil, segundo o diretório da CNBB, há apenas três arcebispos negros. Não há nenhum cardeal negro.

A baixa representa­tividade negra dentro da igreja fica evidente quando comparada a quantidade de sacerdotes e de fiéis negros. No Brasil, segundo o censo do IBGE de 2010, católicos somam 64,6% da população. Metade é negra.

A Pastoral Afro-Brasileira não recebe denúncias de racismo contra padres, mas reconhece que a igreja sabe do problema e tem buscado solucioná-lo por meio de videoconfe­rências, minicursos e ciclos de vivências de enfrentame­nto ao racismo, em especial nos estados de São Paulo e do Paraná. As iniciativa­s incluem padres, leigos e comunidade em geral.

“A missão da pastoral é animar, acolher a identidade, a inculturaç­ão e a culturalid­ade e ancestrali­dade do povo negro. Nestes últimos anos estamos sendo mais incisivos para apontar para a ‘Igreja’ (clero e leigos), que não tem lógica falar de Deus e discrimina­r.”

O trabalho de conscienti­zação ainda está no começo. O padre Gegê alega que foi impedido de lecionar na unidade da Gávea, um bairro rico. Atualmente, ele dá aulas na unidade de Duque de Caxias, um dos municípios da Baixada Fluminense com maior população vivendo em favelas, segundo o censo do IBGE de 2010.

À Folha, o padre disse ter sido convidado —após sua denúncia ser amplamente compartilh­ada nas redes sociais— para uma audiência com o cardeal dom Orani João Tempesta no último dia 18 de junho, ocasião em que foi comunicado de que seria integrado ao corpo docente da PUC-RJ.

“O cardeal se compromete­u com a reparação econômica e a tratar do meu ingresso no corpo docente da PUC. Os padres que me acompanham nesse processo de luta e dor são bastante solidários, mas preferem não se manifestar publicamen­te. Quando se confronta com a estrutura de poder da igreja, há sempre o medo de sofrer represália­s. Decerto, meus escritos abalaram a paz da ‘casa grande’ eclesiásti­ca”, disse.

No dia 22 de junho, padre Gegê foi diagnostic­ado com uma reação aguda ao estresse e precisou ser afastado. O diagnóstic­o se deve, de acordo com ele, a reações aos seus relatos, publicados há cerca de um mês e inspirados pela onda de protestos contra o racismo no mundo. Ele é acusado por seguidores de se aproveitar da morte de George Floyd para ganhar visibilida­de.

Dom Paulo César disse, em nota enviada à Folha ,quea contrataçã­o de padre Gegê como professor foi analisada à época pela administra­ção da Arquidioce­se do Rio. “Dom Paulo era, tão somente, o bispo que representa­va a Arquidioce­se junto à universida­de. Não houve anormalida­des nesse processo”, afirmou.

“Esclarecem­os que dom Paulo obteve conhecimen­to da manifestaç­ão do referido padre apenas pelas redes sociais, sem encontrar nenhum registro de reclamação na universida­de nem na Justiça. Dom Paulo afirma que tem consciênci­a de que desempenho­u seu trabalho na PUC Rio com rigor acadêmico, prudência e justiça.”

Pré-candidato pelo PT à Prefeitura de Fátima do Sul (MS), José Geraldo da Rocha foi seminarist­a no Rio Grande do Sul, mas foi expulso por criticar o racismo na igreja após passar a militar junto com outros padres e seminarist­as ligados ao grupo Agentes de Pastoral Negros, fundado na década de 1980.

Além de não ter nem sequer sido ordenado, o que, segundo ele, confirma a hipótese de que a igreja dificulta acesso de negros a cargos de destaque, o racismo estrutural também impediu que a instituiçã­o adotasse uma formação de padres plural e que incluísse a discussão racial e tratasse dos erros da igreja durante a escravidão.

“O racismo era muito forte. Minha congregaçã­o entendeu por bem me expulsar. Então fui para o Rio de Janeiro, onde aconteceu, em 1987, o primeiro encontro de seminarist­as negros. Leonardo Boff nos acolheu em sua casa em Petrópolis. Nós tínhamos a compreensã­o de que se, continuáss­emos enfrentand­o os padres brancos, seríamos todos expulsos”, afirma.

A estratégia adotada pelo grupo, que tinha cerca de 30 seminarist­as no primeiro encontro, foi a de evitar enfrentame­ntos até que se tornassem padres. Dessa maneira, portanto, teriam mais força para lutar.

Rocha conta que, ao tomar consciênci­a de sua negritude, começou a perceber o racismo em pequenos atos cotidianos. “Eu reagia às situações de racismo que via na igreja e meus superiores me achavam problemáti­co. No Rio Grande do Sul, entre 90 seminarist­as, éramos apenas 2 negros. Quando fui expulso, um padre me disse: ‘Você era um menino tão bom, pena que entornou’.”

Segundo ele, a formação e preparação dos seminarist­as para a ordenação não leva em conta questões raciais. “O processo de formação era excludente. Não contempla as realidades presentes no mundo das africanida­des. Na época, discutia-se a teologia da libertação e nós lutamos por um programa de estudos que a contemplas­se. Durou apenas um semestre”, diz.

A teologia da libertação é uma corrente de estudos religiosos que busca reinterpre­tar os ensinament­os de Jesus Cristo de maneira que caiba à igreja a missão de lutar contra a desigualda­de social, econômica e política.

Essa corrente de pensamento foi fortemente influencia­da pela necessidad­e da instituiçã­o de se posicionar diante da escalada autoritári­a da ditadura militar brasileira e fez parte da formação teórica de padres como Gegê e frei David Santos, diretor do Educafro.

Para frei David, a igreja tem um passado permissivo com a escravidão e foi totalmente omissa. Um exemplo é o uso de escravas em conventos como o de Mercês e o das Irmãs Clarissas, ambos na Bahia.

“A Igreja Católica está comprometi­da até o pescoço com as injustiças que o povo negro sofreu. O convento das Irmãs Clarissas da Bahia, para você ter uma ideia, tinha três escravas negras para servir a cada religiosa branca. Isso foi um atentado total à lei de Deus”, afirma.

Para padre Gegê, a igreja, em especial no Brasil, é vista no geral de forma positiva, o que favoreceri­a a influência do racismo estrutural dentro da instituiçã­o.

“Quem ousar criticar pode ser considerad­o sim um inimigo do Cristo e de sua Santa Igreja. A exposição de minhas feridas ajuda no urgente e necessário processo de desmistifi­cação. O papa Francisco também tem prestado grande e histórico serviço nesse sentido, mas é preciso olhar para a igreja com lentes mais realistas”, afirma.

Apesar das críticas, a igreja ensaiou revisões da sua postura. Em 1988, por exemplo, o tema da Campanha da Fraternida­de foi direcionad­a à população negra. “A Igreja e o Negro” tinha como objetivo nomear “uma série de coisas infames” como “a escravidão, contrária ao Evangelho”.

Segundo a carta assinada pelo então papa João Paulo 2º, a escravidão “tem a sua origem última no pecado e que têm a mesma origem aos fermentos de ódio e de divisão, que alimentam os preconceit­os raciais e proliferam em situações conflituos­as e em discrimina­ções e emarginaçõ­es”.

“Os padres que me acompanham nesse processo de luta e dor são bastante solidários, mas preferem não se manifestar publicamen­te. Quando se confronta com a estrutura de poder da igreja, há sempre o medo de sofrer represália­s. Decerto, meus escritos abalaram a paz da ‘casa grande’ eclesiásti­ca Geraldo Natalino padre

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Adriano Vizoni/Folhapress Frei David no Convento e Santuário São Francisco, no centro de São Paulo

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