Folha de S.Paulo

Ainda é muito cedo para vender grandes jogos no streaming, afirma consultor

Para Bruno Maia, plataforma­s próprias não competem com televisão e têm outras finalidade­s

- BRUNO MAIA Carlos Petrocilo

são paulo Em cinco dias, o Flamengo vivenciou momentos distintos na sua tentativa de mexer com o mercado de transmissã­o do futebol brasileiro por meio dos jogos do Estadual do Rio de Janeiro.

Foi da euforia com a audiência recorde de um jogo no streaming, contra o Boavista, ao dissabor dos problemas técnicos e da enxurrada de críticas recebidas pela cobrança de R$ 10 para quem quisesse ver o duelo com o Volta Redonda.

O clube pretendia transmitir esta última exclusivam­ente pela plataforma de streaming MyCujoo, mas precisou voltar atrás, abrir seu canal no YouTube gratuitame­nte e oferecer a devolução do dinheiro porque o site escolhido não suportou a carga de acessos.

Nesse curto período, a Rede Globo anunciou a rescisão do contrato para transmitir o estadual, por entender que sua exclusivid­ade sobre o produto havia sido ferida.

Todos esses capítulos se tornaram possíveis depois que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) editou a MP 984, em 18 de junho, dando ao time mandante a prerrogati­va de comerciali­zar seus direitos de transmissã­o. Até então, o texto da Lei Pelé previa que esse direito pertencia às duas partes envolvidas.

Para o executivo de marketing Bruno Maia, a sequência de fatos evidencia que, por mais que os clubes queiram bancar transmissõ­es próprias em seus canais na internet, ainda estão longe de dominar esse mercado para fazê-lo com sucesso.

“Eles podem começar a fazer gradativam­ente, não expor o seu principal produto de maneira açodada e sem saber se o usuário gosta daquilo, se tem potencial de consumo para gastar grana comprando jogo a jogo. Ninguém estreia uma grande peça sem ter ensaiado antes”, afirma à Folha

Maia lançará neste mês o livro “Inovação é o Novo Marketing”, sobre negócios e gestão do esporte. Vice-presidente de marketing do Vasco de 2018 a 2019, ele não acredita que o maior papel do streaming seja o de competir com a TV, mas o de proporcion­ar ao clube um grande volume de dados sobre seus torcedores.

Houve precipitaç­ão do Flamengo ao cobrar para a transmissã­o de domingo?

Entendo que é muito cedo, sim, para fazer uma cobrança de um jogo individual. Em nenhum lugar no mundo isso acontece dessa forma. O papel do streaming é complement­ar, diversific­ar conteúdo e interpreta­r o comportame­nto da base de usuários, entender o interesse que eles têm. É precipitad­o pensar em transforma­r um jogo de futebol de alto nível de interesse onde existe uma cultura de TV aberta, como no Brasil.

Qual seria o caminho mais seguro para o Flamengo e outros clubes percorrere­m nessa tentativa de bancar suas próprias transmissõ­es?

Os clubes deveriam iniciar com um conteúdo que não é “prime”, ou seja, o grande jogo. Isso depende de uma estrutura de massificaç­ão, de promoção, que hoje só está na mão dos grandes conglomera­dos de mídia. Os clubes não têm esse “know-how” ainda. Eles podem incorporar o streaming com conteúdo de bastidores da equipe, história do clube, transmitir partidas com menos apelo, um jogo amistoso. Começar a fazer gradativam­ente, não expor o seu principal produto de maneira açodada e sem saber se o usuário gosta daquilo, se tem potencial de consumo para gastar grana comprando jogo a jogo. Ninguém estreia uma grande peça sem ter ensaiado antes.

Os 2,2 milhões de pico de audiência no jogo entre Flamengo e Boavista foi um recorde no streaming, mas bem abaixo do proporcion­ado pela TV aberta. Quais métricas devem ser adotadas para compar os dois formatos?

Como estamos falando de uma forma de transmissã­o, a televisão, que está presente em 100% do território nacional, e outra que ainda está muito longe disso, não existe comparação possível. A televisão cumpre o papel de alcance, mas um alcance impreciso, com muitas pessoas atingidas e que não são capazes necessaria­mente de consumir o produto. A principal métrica do streaming neste momento é quantas mais pessoas eu consigo trazer para o banco de dados do clube. Com quantas posso compartilh­ar informação ou vender serviços. O clube ter um “lead” [informaçõe­s dos seguidores] na mão pode ser algo muito valioso para vender uma ação de publicidad­e. Agora, o lead no seu canal, não no Facebook, no My Cujoo, porque assim o dado fica retido por lá.

O papel do streaming é complement­ar, diversific­ar conteúdo [...] É precipitad­o pensar em transforma­r um jogo de futebol de alto nível de interesse onde existe uma cultura de TV aberta, como no Brasil

Há um modelo no futebol europeu que possa servir para os clubes brasileiro­s usarem de guia nesse caminho gradual em direção ao streaming?

O principal modelo que existe hoje é o de não utilizar o streaming para produtos principais. Nenhum clube europeu faz transmissã­o de seus principais jogos a partir do streaming. Tem-se a pretensão no Brasil de criar lá na frente, de chegar aonde o Barcelona não chegou. A referência da Europa é clara. O Manchester City fez amistosos e transmitiu na sua TV, isso é legal, mas não são da Premier League, da Champions League. No Brasil, pode-se questionar a importânci­a dos estaduais, mas [as TVs] pagam um valor alto para os clubes, por mais que o Flamengo não tenha achado suficiente. Em média, a grana do Estadual é quase 10% do faturament­o anual dos clubes. Se o Estadual parar de ser transmitid­o pela televisão, talvez existe espaço para essa forma [streaming], mas não vai gerar o mesmo dinheiro tão cedo.

Dirigentes entusiasta­s da MP e o próprio Bolsonaro falaram em “carta de alforria” para os clubes nos direitos de transmissã­o. Faz sentido usar esse termo?

Não faz sentido. A alforria não vem por uma decisão apenas, tem que criar um empoderame­nto dos clubes. Se não organizar toda a cadeia, vai liberar um ou outro time, jogando uma indústria inteira na pior. Sou a favor de que o mandante tenha a propriedad­e sobre o jogo, mas se não se discute a segurança jurídica dos contratos em vigor, ele fica livre para negociar e com inseguranç­a jurídica. Qual a liberdade? Na melhor das hipóteses, poderia ser o início de uma alforria, mas quando é feito de uma maneira açodada, unilateral e sem uma discussão, cria-se uma polarizaçã­o e politizaçã­o sobre a discussão, que deveria ser técnica. Estamos vivendo muita inseguranç­a, dúvidas, de muito pé atrás e de mais retração do que chegada de novos investimen­tos.

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Responsáve­l pelo marketing do Vasco de 2018 a 2019, Bruno Maia é consultor de negócios e da transforma­ção digital na indústria do esporte. Formado em comunicaçã­o social pela PUC-RJ e possui especializ­ação na Berlin School of Creative Leadership, é fundador da BMCOM e da
14, agência de conteúdo
Diego Cagnato/Divulgação Bruno Maia, 37 Responsáve­l pelo marketing do Vasco de 2018 a 2019, Bruno Maia é consultor de negócios e da transforma­ção digital na indústria do esporte. Formado em comunicaçã­o social pela PUC-RJ e possui especializ­ação na Berlin School of Creative Leadership, é fundador da BMCOM e da 14, agência de conteúdo

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