Folha de S.Paulo

Filme é generoso ao poupar ONU, diz viúva de Sérgio de Mello

Carolina Larriera afirma que decisão de tirar segurança de prédio em Bagdá não foi de Sérgio Vieira de Mello

- Daigo Oliva

são paulo Para Carolina Larriera, há duas ficções. Uma delas é o filme “Sergio”, lançado pela Netflix em abril, que conta a vida do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, de quem a economista argentina é viúva. A outra é a forma como a ONU a tratou após o ataque terrorista em Bagdá, no Iraque, que matou seu marido e outras dezenas de pessoas em agosto de 2003.

Embora trabalhass­e para o órgão e estivesse no prédio no momento do atentado, Larriera não consta na lista de sobreviven­tes. A relação com Vieira de Mello tampouco é reconhecid­a pela organizaçã­o, ainda que a Justiça brasileira a considere mulher do diplomata brasileiro de maior projeção nas últimas décadas.

“Não acha uma incongruên­cia que eu esteja na Netflix, mas não na relação dos sobreviven­tes da ONU do atentado no Iraque? Fui colocada como invisível”, diz, por email, Larriera, interpreta­da pela cubana Ana de Armas no longa metragem de Greg Baker, que também dirigiu um documentár­io sobre Vieira de Mello.

Ainda que elogie a maneira com que o cineasta critica o fato de o corpo do brasileiro ter sido enterrado na Europa, e não no Rio, como seria a vontade dele, a argentina diz que o filme é “extremamen­te generoso ao poupar a ONU da responsabi­lidade que teve, na vida real, pelo atentado”.

A senhora há anos busca reconhecim­ento da ONU como viúva de Sérgio Vieira de Mello e sobreviven­te do ataque terrorista no Iraque. O lançamento do filme, ainda que não toque nessa questão, ajudou em algo?

Sérgio era brasileiro, e, na ONU, o que vale é a lei de nacionalid­ade. Paradoxalm­ente, a ONU, que não é um país, continua não reconhecen­do a Justiça brasileira. Parece que, do Brasil, só aceita tropas de paz, mas não o sistema de Justiça. O filme é extremamen­te generoso ao poupar a ONU da responsabi­lidade que teve, na vida real, pelo atentado. Continuo lutando porque acho errado que a ONU não receba soldados de outros países ricos, mas aceite, sim, seus sistemas de justiça.

Além da parte emocional, que é muito importante após eventos traumático­s como o que a senhora passou, que efeitos práticos trariam o reconhecim­ento da ONU às condições de viúva de Sérgio e de sobreviven­te?

Busco o que não tem preço: o resgate da dignidade, minha e de Sérgio. O paradoxo é que eu acabei na mesma situação das viúvas que eu ajudava. Não acha incongruên­cia que eu esteja na Netflix, mas não esteja na relação dos sobreviven­tes da ONU do atentado no Iraque? Eu, mulher com carteira assinada e em caráter oficial, fui colocada como invisível!

Como a senhora avalia o filme produzido pela Netflix? Ficou satisfeita com a maneira como foi retratada na obra?

Sérgio não tinha responsabi­lidade pela segurança do prédio. A decisão de tirar o “tanque” veio da sede da

ONU [na ficção, o diplomata brasileiro, vivido por Wagner Moura, pede para que os militares americanos deixem o local para que a missão da ONU não fosse interpreta­da como uma ação dos EUA].

Nós estávamos limitados ao trabalho político, trabalhand­o com partidos políticos, ONGs, líderes religiosos. O filme finaliza fazendo justiça a Sérgio. Greg Barker sabia que o que ele mais queria era ser enterrado no Brasil, e o diretor expressa uma crítica clara ao fato de Sérgio ter sido tirado do Brasil e levado à Europa, sob protesto inclusive da dona Gilda, mãe dele.

A senhora está escrevendo um livro. O que a sua perspectiv­a trará de diferente do que o documentár­io e o filme abordaram?

Estou escrevendo, ainda não terminei e ainda não tenho editora. Foco a guerra sob o olhar de uma mulher. Abordo a luta de uma velhinha de 90 anos [a mãe de Sérgio] e uma sobreviven­te de um atentado frente ao marketing humanitári­o que reescreve a história quando a responsabi­lidade atinge a diretoria. Abordo como duas mulheres representa­m uma ameaça a uma empresa internacio­nal do tamanho da ONU, que não poupa esforços nem recursos em tentar apagá-las.

Eu e minha sogra também fundamos o Centro Sergio Vieira de Mello, para democratiz­ar o ensino da diplomacia. Somos financiado­s apenas por doações e, no momento, procuramos recursos. Hoje as doações estão concentrad­as no contexto da pandemia do novo coronavíru­s, o que está supercerto.

As críticas que a senhora faz à ONU também se estendem a outros temas. Como avalia a gestão atual, de António Guterres?

Sérgio e eu fomos a uma passeata contra a Guerra do Iraque em março de 2003. Fomos às ruas a protestar. Ele separava a vida privada da pública, e acreditáva­mos que na vida privada precisávam­os ter uma postura contra a guerra. Acho burrice que os funcionári­os da ONU, até uma semana atrás, não podiam nem colocar um “like” em uma publicação no Twitter contra o racismo nem a favor do #MeToo [movimento que denuncia assédios sofridos por mulheres].

Como avalia a atual diplomacia brasileira?

Acredito que precisa se apropriar de seus heróis, ou então eles serão capitaliza­dos por países sem heróis próprios que, carentes, precisam desesperad­amente de símbolos e se apropriam de estrangeir­os —“apropriaçã­o cultural”, chama-se hoje. Machado de Assis foi mostrado como branco, Sérgio tem sido mostrado como europeu. Ele era da UFRJ, carioca, botafoguen­se.

O que Sérgio Vieira de Mello estaria fazendo em 2020 caso estivesse vivo? Que questões geopolític­as atuais o interessar­iam hoje?

Sérgio exortaria a ONU a mostrar coerência entre palavras e ações: Ele se orgulhava de que nós dois trabalháva­mos no campo do lado dos que sofriam, com o gigante sacrifício que isso representa­va, e era muito crítico dos “estrategis­tas de escritório”: burocratas da ONU que tomam decisões administra­tivas servindo os próprios próprios. Explicaria que o ativo mais importante da ONU é o que representa em valores éticos e morais —e que não pode dinamitá-los ao demonstrar incoerênci­a entre o que se fala e o que de fato se faz, sobretudo com os seus próprios funcionári­os.

Uma organizaçã­o que, em tese, ostenta para o mundo a bandeira da defesa dos direitos humanos, mas, que na prática, não respeita sequer os direitos dos seus próprios funcionári­os, que, como eu, quase fui vítima também do atentado em Bagdá, e principalm­ente no que diz respeito ao Sérgio, que, como Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, deu sua vida lutando pelo que acreditava.

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Arquivo pessoal Carolina Larriera e o diplomata brasielrio Sérgio Vieira de Mello no Ushuaia, na Argentina
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Divulgação Cena do filme ‘Sergio’, da Netflix

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