Folha de S.Paulo

Infectado, presidente tenta usar vírus como aliado

Bolsonaro faz propaganda irracional da hidroxiclo­roquina e segue minimizand­o a Covid-19

- Igor Gielow

SÃO PAULO Após quase cinco meses de negação e exposição pública em desafio aos riscos de contaminaç­ão pelo novo coronavíru­s, Jair Bolsonaro (sem partido) está infectado pelo patógeno que já matou 65 mil pessoas no Brasil.

Não se fez de rogado: aproveitou para fazer propaganda de seu medicament­o de estimação na crise, a hidroxiclo­roquina, e ainda conseguiu arrumar espaço para criticar governador­es de estado pelo isolamento social horizontal.

Em sua entrevista para as TVs Record e CNN Brasil, além da oficial TV Brasil, Bolsonaro insistiu inclusive que seu estado clínico “normal” poderia ter relação com a medicação que tomara na véspera. Comparou o vírus a “uma chuva”.

Apontou uma “chance de sucesso de quase 100%” para quem toma a hidroxiclo­roquina nos estágios iniciais da Covid-19.

Não há comprovaçã­o clínica disso, como ele mesmo admitiu em uma gravação no Facebook divulgada depois, e mesmo os EUA de seu modelo Donald Trump interrompe­ram o uso da medicação.

A depender da evolução da infecção, naturalmen­te, Bolsonaro poderá contar com o coronavíru­s como um inesperado aliado.

A vitimizaçã­o já começou na própria segunda-feira (6) à noite, após a notícia sobre a suspeita de Covid-19 ser veiculada, quando os filhos presidenci­ais postaram críticas às ironias que passaram a abundar nas redes sociais.

Afinal de contas, entre líderes mundiais, o presidente sempre foi um dos mais notórios negacionis­tas da seriedade da doença. Mesmo a entrevista em que anunciou a contaminaç­ão foi ao vivo, contrarian­do o recomendad­o, feita junto aos repórteres e com direito a retirada de máscara.

Se, como para a maioria das pessoas atingidas, a Covid-19 se restringir a sintomas leves, Bolsonaro poderá dizer que foi curado pelo remédio que tanto promoveu, ainda que não haja evidências para dizê-lo.

Não será a primeira vez que um drama pessoal poderá ser usado por Bolsonaro em favor de sua imagem, hoje reduzida a um núcleo duro de 15% de apoiadores e um contingent­e igual de eleitores potenciais, mas não tão fiéis.

A facada que recebeu na campanha de 2018, que quase o matou, foi maximizada pelos bolsonaris­tas e pelo próprio presidente. Se não é possível atribuir sua eleição a ela, é certo dizer que ela criou uma aura algo mítica em torno de Bolsonaro.

Além disso, o então candidato ficou isento de debates e escrutínio ao vivo.

Como agirá Bolsonaro ainda é insondável, mas a contaminaç­ão é uma inevitável ironia. Desde a ascensão do SarsCoV-2 no país, ele tentou minimizar o impacto da doença.

A chamou de “gripezinha” e, num já histórico pronunciam­ento de TV em 24 de março, repetiu o diagnóstic­o e afirmou que não teria problemas se contraísse a doença devido a seu “histórico de atleta”.

Fez questão de confratern­izar-se com manifestan­tes nos atos antidemocr­áticos que pulularam em Brasília de março a junho, e hoje são alvo de investigaç­ão no Supremo Tribunal Federal.

Além da negação da ciência sobre o coronavíru­s, Bolsonaro mirava a política.

O presidente sempre priorizou o temor pelo inevitável impacto recessivo da pandemia sobre a economia e, consequent­emente, sobre sua popularida­de. Como bem sabem Dilma Rousseff e Fernando Collor, a combinação entre crise econômica e desarticul­ação política é perigosa.

Além disso, a maior parte dos governador­es de estado se colocou como antítese do Planalto na condução da emergência, em especial o principal adversário do presidente, João Doria (PSDB-SP).

Presidenci­ável como o tucano, o fluminense Wilson Witzel (PSC) acabou abatido por outro aspecto da pandemia: é alvo de investigaç­ão sobre malversaçã­o de verbas destinadas ao combate à doença, e sofre um processo de impeachmen­t na Assembleia local.

A postura do governo federal influencio­u até o embate entre Executivo e outros Poderes. O Supremo Tribunal Federal virou alvo de críticas do presidente após delegar a decisão sobre o manejo do vírus a estados e municípios.

O presidente correu riscos políticos também. Frases como “E daí?” e “Não sou coveiro”, ao comentar as mortes da pandemia, tenderão a cobrar preço eleitoral à frente.

Bolsonaro, que mal conseguia colocar uma máscara no rosto quando começou a usar o apetrecho de forma intermiten­te, de todo modo aos poucos foi reduzindo a estridênci­a de seu discurso.

A crescente calmaria acompanhou a piora da situação jurídica de seu entorno, com

Não será a primeira vez que um drama pessoal poderá ser usado por Bolsonaro em favor de sua imagem, hoje reduzida a um núcleo duro de 15% de apoiadores e um contingent­e igual de eleitores potenciais, mas não tão fiéis

militantes bolsonaris­tas sendo presos e o adensament­o das investigaç­ões sobre seus filhos, que chegou ao paroxismo com a prisão do ex-faz-tudo da família, Fabrício Queiroz, em 18 de junho.

Ainda assim, o Ministério da Saúde segue sem titular há mais de 50 dias. Liderada interiname­nte pelo general da ativa Eduardo Pazuello, a pasta teve seus principais cargos ocupados por militares, o que é alvo de críticas de especialis­tas no setor.

A narrativa de Bolsonaro, até na briga pela reabertura da economia com governador­es, emula o percurso de seu ídolo, o presidente Trump —exceto na insistênci­a na hidroxiclo­roquina, abandonada pelo americano, e até aqui pela infecção.

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