Folha de S.Paulo

Torcer para que o mandatário morra vítima do coronavíru­s é nos igualar a ele

- Thiago Amparo Advogado, é professor de políticas de diversidad­e na FGV Direito SP

Tecer um argumento é como lapidar um diamante. Exige cuidado e critério. Requer, acima de tudo, separar, de um lado, o que é um argumento de razão pública aplicável à toda a coletivida­de, e o que é uma reação que vem das vísceras de quem a profere, de outro.

Ao torcer para que Bolsonaro morra de Covid-19, Hélio Schwartsma­n joga diamantes falsos aos porcos. E os porcos, neste caso, somos nós. Transveste violência de argumento. Ao apelar para as nossas entranhas raivosas, Schwartsma­n inflige a todos nós a mesma doença que queremos combater na figura de Bolsonaro: o culto à morte.

Que fique claro: todos os que não pactuam com a necropolít­ica instaurada pelo próprio Bolsonaro dele sentem raiva.

Deveriam, ao menos. É o que nos faz humanos. Para o psicólogo Paul Ekman, raiva é uma das emoções basilares da condição humana. Para a feminista Audre Lorde, raiva é o que se deve sentir diante de um sistema opressivo. Acontece que apelar à raiva justiceira num país endemicame­nte violento é reeditar o mundo que queremos destruir.

No argumento consequenc­ialista que Schwartsma­n apresenta, a consequênc­ia é reeditar o ideal bolsonaris­ta onde a vida humana não tenha qualquer valor. Torcer para que Bolsonaro morra é nos igualar a ele. Se vísceras produzisse­m bons argumentos, o sistema pré-iluminista de linchament­o público teria sido um ótimo lugar para se viver. Não foi. E a violência reeditada todos os dias em nossas ruas revive este lugar onde humanidade não tem espaço.

Que a raiva contra Bolsonaro mostre o diamante que nela se esconde: sede por justiça. E isto não será feito dilacerand­o-o na praça pública que é este jornal. Derramamos muitos séculos de sangue contra o fascismo para que hoje reencarnem­os sua lógica. Lembro aqui de Judith Butler em “The Force of Non-Violence”: que tipo de mundo estamos construind­o quando apelamos para a violência? Tampouco estamos falando aqui da violência, defendida por Fanon, como libertação diante da opressão colonial. Schwartsma­n, em seu argumento, instrument­aliza a morte para que nossas vísceras sintam o gosto da própria morte.

Que nossa raiva contra Bolsonaro se reverta não em culto à morte, mas em justiça: que ele responda legal e politicame­nte pela morte de 65 mil pessoas que hoje poderiam, deveriam estar vivas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil