Folha de S.Paulo

O genocídio assombra Bolsonaro

O presidente tem feito sua parte da promessa aos indígenas

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

A história política do século 20 legou duas palavras para expressar o mal radical e absoluto: fascismo e genocídio. No índice de malignidad­e política, fascistas e genocidas se sentam no topo. Pior mesmo, só no léxico místico e religioso. Só no inferno.

Essas palavras impregnara­m o vocabulári­o político de formas diferentes. “Fascista” banalizou-se como epíteto para designar qualquer líder autoritári­o que reprime minorias e liberdades.

“Genocídio” não se vulgarizou do mesmo modo. Libertou-se, porém, das amarras do conceito jurídico-penal, que impõe duros requisitos probatório­s e passou a se referir a ações e omissões difusas que multiplica­m a morte em grupos sociais específico­s.

O hábito de invocar os termos para extravasar repugnânci­a afetou seu impacto. A banalizaçã­o trouxe desconfian­ça. Essa desconfian­ça, também banalizada, sugere que a aplicabili­dade dos conceitos precisa de desastre humano quantitati­vamente comparável ao da Europa dos anos 1930. Parece pedir um novo Hitler e um novo Holocausto.

Jair Bolsonaro contribuiu para o revigorame­nto do sentido técnico desses conceitos.

Seria um fascista? Não faltam estudiosos brasileiro­s para dizer que sim. Não é grito sectário, mas argumento. Já cresce o debate sobre o “fascismo bolsonaris­ta”, “novo fascismo brasileiro”, “fascismo à brasileira”.

Se soar suspeito, pode-se recorrer aos maiores pesquisado­res do assunto no mundo. Finchelste­in e Stanley retratam Bolsonaro como o mais acabado exemplar do fascista contemporâ­neo. Está tudo lá: anti-intelectua­lismo, ataque à verdade, construção de realidade paralela, ansiedade sexual, repúdio à igualdade, denúncia de degeneraçã­o moral, fabricação do inimigo, estética da violência, passado místico, ideal de pureza, uso tático da religião.

Seria também um genocida? Não basta a conhecida pulsão de morte de Bolsonaro, nem suas promessas de fuzilament­o; não basta a correlação entre sua atitude e, por exemplo, o aumento da letalidade policial; nem mesmo sua escolha por deixar cidadãos morrerem e sua indiferenç­a às mortes evitáveis na pandemia.

Na acepção jurídica, genocídio não é qualquer morticínio de um grupo étnico, racial ou religioso. O crime se pune quando provada a intenção de destruir esse grupo, por ação ou omissão. É julgado pelo Tribunal Penal Internacio­nal (TPI).

Bolsonaro tem feito sua parte. Cumpriu a promessa de “adaptem-se ou desapareça­m” aos povos indígenas do país. Em desafio aberto à Constituiç­ão, o governo inviabiliz­a operaciona­lmente os órgãos de fiscalizaç­ão ambiental e proteção desses povos (Ibama, Funai e ICMBio), combate o que chama de “indústria da demarcação” e estimula invasão de terras indígenas por grileiros, garimpeiro­s e madeireiro­s.

Para esse projeto, um vírus é um providenci­al acelerador. A maior vulnerabil­idade socioepide­miológica dos indígenas, combinada com a ausência deliberada do Estado, traz a melhor oportunida­de de seu governo para a extinção de etnias inteiras. Junte-se a isso o envio ilegal de cloroquina, remédio que pode matar.

O TPI já analisa o caso do indivíduo Bolsonaro. Sylvia Steiner,

ex-juíza do TPI, afirma que a omissão de Bolsonaro pode configurar uma política genocida semelhante a Darfur: “Alguns elementos podem levar à conclusão de que essa é uma política deliberada e proposital para limpar uma área e remover os indígenas”.

O STF, se não pode punir o crime de genocídio, pode preveni-lo ou mitigá-lo ao constatar omissão do Estado e ordenar, com urgência, que se restabeleç­a a política pública. Uma ação assinada por 14 advogados indígenas está na mesa de Luís Roberto Barroso.

Na gaveta de Rodrigo Maia, há dezenas de pedidos de impeachmen­t. Alguns deles com o objetivo de conter o genocídio indígena enquanto é tempo.

O centrão partidário e magistocrá­tico, contudo, está ansioso para firmar um tratado de paz com Bolsonaro e passar uma borracha nesses 18 meses. Meses repletos de animação fascista e intenção genocida.

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