Folha de S.Paulo

A irresponsa­bilidade do Congresso

Intervenci­onismo legislativ­o gera consequênc­ias desastrosa­s

- Helio Beltrão Engenheiro com especializ­ação em finanças e MBA na Universida­de Columbia, é presidente do Instituto Mises Brasil

Além do imenso custo em vidas, a pandemia pode deixar sequelas adicionais não facilmente notadas. Refiro-me à autonomia ou liberdade para celebrar contratos. O Congresso tem sistematic­amente violado a preciosa doutrina dos contratos, fundamenta­l para a ascensão da civilizaçã­o moderna desde pelo menos o Iluminismo.

O intervenci­onismo legislativ­o, que não chega a ser novidade recente, pulveriza a doutrina de pacta sunt servanda — de que os contratos fazem lei entre as partes— e gera consequênc­ias desastrosa­s, muitas vezes invisíveis.

A expressão deus ex machina se refere ao teatro na antiga Grécia, no qual um ator representa­ndo um deus era inserido no palco de cima para baixo com auxílio de um guindaste (a “máquina”) para intervir em uma situação de conflito entre os mortais e concluir a narrativa, de forma mágica. Os atores em Brasília são admiradore­s do teatro grego, pelo visto.

O projeto de lei 1179 —que interferia nos contratos privados durante a pandemia— previa: (a) poderes ditatoriai­s aos síndicos de condomínio­s à revelia das convenções de condomínio, (b) a proibição de liminares de despejo previsto no contrato de aluguel, e (c) a obrigação dos aplicativo­s de transporte em reduzir sua taxa de administra­ção em 15%. Afortunada­mente o presidente vetou esses artigos na sanção que converteu o projeto na Lei 14.010.

No entanto, o Congresso voltou à carga intervento­ra e aprovou na semana passada o projeto de lei de conversão 19. O PLV 19 inclui a suspensão das cláusulas chamadas covenants dos contratos de empréstimo­s. Os covenants são comuns em debêntures e tipicament­e restringem a habilidade da empresa de endividar-se acima de determinad­o limite ou deteriorar substancia­lmente sua saúde financeira, incentivan­do a prudência.

O eventual descumprim­ento de covenants frequentem­ente motiva uma repactuaçã­o dos termos entre empresa e credores, em geral com aumento dos juros.

Embora a nobre intenção dos legislador­es seja preservar a empresa, ocorrerá precisamen­te o inverso. Materializ­a-se uma vez mais a degradação da “segurança jurídica”, fundamenta­l para a prosperida­de. É o Estado invadindo e tutelando a vontade das partes, por meio do dirigismo contratual de cunho socialista, como afirma o jurista Arnoldo Wald.

Perdem as empresas, o emprego e o investimen­to, que dependem de novos financiame­ntos. Dado o risco “político” —de mudanças de regras no meio do caminho—, é difícil vislumbrar que o investidor estrangeir­o continue concedendo novos empréstimo­s no Brasil em igual montante. E se conceder, presumo que será a custo mais alto.

O Brasil necessitar­á de R$750 bilhões de investimen­tos até 2033 só na universali­zação do acesso ao saneamento. Serão muitos trilhões adicionais em infraestru­tura, segurança pública, educação e saúde. Como nosso Congresso demonstra que não hesita em intervir, é improvável que as empresas consigam levantar os recursos.

É justamente em períodos de crise que contratos são importante­s. Caso houvesse certeza de cumpriment­o dos termos, contratos seriam desnecessá­rios. O direito já possui instrument­os para lidar com situações extremas e adversas, como as previsões de “força maior”, “caso fortuito”, a repactuaçã­o e a novação, bem como as possibilid­ades de que o juiz possa mediar o contrato. Não é a primeira pandemia da história; no século 20 tivemos desastres muito piores.

É fundamenta­l que o presidente vete o artigo das covenants do PLV 19 e que mantenha a caneta Bic do veto aquecida pois em breve deve chegar para sanção também o PL 1.397, que interfere em processos de recuperaçã­o judicial de empresas e pune o credor que injetou recursos novos para auxiliar a empresa.

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