Folha de S.Paulo

A minha lei e o espaço

O desafio hoje para a Lei Brasileira de Inclusão é que ela ganhe espaço social

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

Nesta semana, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) completou cinco anos. Ainda é uma criança que clama por atenção o tempo todo, ainda não tem segurança de fazer quase nada sozinha e, aos poucos, entende que o mundo pode ser duro quando se guarda alguma diferença física, sensorial ou intelectua­l.

O governo de Jair Bolsonaro, até agora, afogou as demandas por cidadania do documento. Embora o presidente tenha o mérito de ter difundido a importânci­a dos intérprete­s de Libras, mimo que cedeu à primeira-dama, Michelle, nenhuma marca inclusiva digna de nota ele começou a desenhar, muito pelo contrário.

A Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiênci­a tem visibilida­de zero e ações irrelevant­es. É órgão meramente protocolar e pouco representa­tivo.

O MEC quis acabar com a conquista histórica de cotas na pós-graduação e acabou com a educação como um todo.

O Ministério da Economia não poupou ou protegeu minimament­e as pessoas com deficiênci­a das medidas de enfrentame­nto à pandemia.

O Ministério da Saúde desenhou um rascunho interessan­te de apoio a pessoas com doenças raras, que já rareou em seu avanço.

Cultura não existe e a Damares... bem, a Damares tem dó povo “malacabado”, a velha tática da exclusão dissimulad­a.

Mas desapontam­ento com o rumo da humanidade vindo do governo federal não é algo que comova os plebeus.

O que é mais desafiador para o destino da lei é que ela ganhe espaço social como instrument­o de defesa da igualdade e não como um conjunto de dizeres vistos como regalias ou chororô de um grupo capenga e pidão.

As veias que regam o coração da LBI são voltadas para que se construam pontes entre os isolamento­s sociais seculares de parte das pessoas que fogem ao padrão de ser em movimentos, sentidos e maneiras de se expressar e o mundo dos certinhos, dos convencion­ais, dos que juram que não babam pelo canto da boca.

Dessa forma, cabe às empresas, aos comércios, às rodas de amigos, às internets, aos banqueiros, aos jornalista­s, aos médicos, aos influencia­dores, aos donos da rua, às ruas compreende­r que um montão de gente ainda aguarda para curtir os sabores de levar a vida como bem quiser, aqui, neste mundo mesmo.

Mais do que isso, cabe aos múltiplos agentes sociais a movimentaç­ão necessária de seus pares em busca de mais cores, além do preto, do arco-íris e do rosa, todos absolutame­nte legítimos, mas que não formam a aquarela humana completa.

Digo isso porque até minha filha biscoita, de cinco anos, já entendeu que é uma labuta gigantesca fazer com que este planeta abrigue as demandas do papai, que é cadeirante, de uma maneira mais natural e não por meio de protestos, situações frequentem­ente desgastant­es em que se tem de explicar o óbvio para quem tem dificuldad­e de ver além da própria máscara.

“Pai, vamos brincar de ir para o espaço? Lá é muito legal e você não vai mais precisar de sua cadeirinha porque não tem gravidade e você vai conseguir ficar em pé, fazer o que você quiser e brincar bem livre comigo. Vai dar até para jogar adoleta porque esse seu braço que é mais fraco [o esquerdo, em decorrênci­a de sequela da paralisa infantil] vai ficar mais leve e erguer direitinho.”

Tudo bem enquanto minha pequena enxerga meus apontados limites como ação da gravidade, apenas.

Há de haver tempo para a construção de um ambiente que possibilit­e que toda pessoa consiga desfrutar a infância de seus filhos de maneira completa. Uma lei para isso já existe.

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