A polêmica ivermectina
Mais uma vez, as práticas estão atropelando as evidências científicas
Infelizmente, não temos evidências de que a ivermectina seja útil na prevenção ou tratamento da Covid-19. Mesmo assim, ela vem sendo distribuída, em diversos locais do Brasil, como parte de um “kit” para tratamento da doença.
Descoberta em 1975, foi liberada para uso animal e incorporada para tratamento de humanos na década de 80. Tratase de um ótimo remédio para sarna, piolho e alguns parasitas intestinais, como estrongiloides, oxiúros, entre outros. Embora bem tolerada pela maioria das pessoas (grávidas não devem usar), pode causar desde vermelhidão nos olhos e pele seca até problemas no fígado.
Um grupo de pesquisadores de Melbourne, na Austrália, publicou um artigo na primeira semana de abril descrevendo a capacidade da ivermectina em inibir a multiplicação do novo coronavírus. Experimentos em laboratório demonstraram que a ivermectina consegue inibir a multiplicação do vírus em linhagens de células. O título do artigo é provocador: “Ivermectina, droga aprovada pela FDA, inibe o Sars-CoV-2 in vitro”, destacando que já é aprovada para uso em outras doenças.
Todavia, precisamos rever alguns fatos importantes.
Há muitos anos, a ação antiviral do remédio tem sido explorada. Foi testada contra HIV, vírus da dengue e vírus da zika, entre outros. Em nenhuma conseguiu estabelecerse como alternativa viável para tratamento ou prevenção.
O trabalho australiano foi duramente criticado por um dado marcante. Enquanto a concentração usada para inibir parasitoses é da ordem de nanogramas, a empregada para inibir o novo coronavírus foi da ordem de microgramas. Por equivalência, para que a ivermectina produzisse efeito antiviral, precisaríamos de concentrações 10 mil a 20 mil vezes maiores que as habituais. Seriam necessários tantos comprimidos que decerto ninguém conseguiria tomá-los. Além disso, não são conhecidos os efeitos colaterais em dosagens tão altas.
François Noël, professor do Laboratório de Farmacologia Molecular da UFRJ, fez modelos utilizando os dados publicados pelo trabalho australiano e confirmou que as doses necessárias seriam muito maiores das já aprovadas.
Vários outros estudos avaliam a ivermectina no tratamento ou prevenção da Covid-19. A resposta se é eficaz deve vir em breve. Mas um grave problema vem acontecendo: uma corrida para as farmácias, uso desordenado da medicação e, pior, sua distribuição para tratamento precoce da doença, sem qualquer evidência que funcione.
Logo no começo da pandemia, o médico brasileiro André Kalil, da Universidade de Nebraska, fez um importante alerta em uma prestigiada revista médica. Lembrou que, durante a epidemia de ebola em 2014, ocorreu uma corrida para uso de diversos medicamentos para tratar a doença: cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, favipiravir, remdesivir, ribavirina, lopinavir-ritonavir, corticoides, inibidores de interleucina 6 e plasma convalescente, para citar só os principais. O uso indiscriminado, sem adequada avaliação, não permitiu conclusão sobre a eficácia de quaisquer deles, ao final da epidemia. “Essa tragédia não pode se repetir”, nos lembra Kalil.
Com a Covid-19, estamos presenciando algo parecido. A ansiedade em usar medicamentos sem comprovação só contribui com a desinformação e dificulta, ainda mais, a busca por tratamentos eficazes ou formas de prevenção.
A distribuição de “kit” com ivermectina promete sensação de segurança não comprovada, que pode afastar o paciente do acompanhamento médico adequado. Até que estudos demonstrem sua eficácia para tratar a Covid-19, é irresponsável utilizá-la em ações de saúde para o enfrentamento da pandemia.