Folha de S.Paulo

Dilúvio de pesquisas sobre o novo coronavíru­s revela o melhor da ciência

Problema não é a quantidade de estudos, mas a politizaçã­o e o descrédito de cientistas em governos como Bolsonaro e Trump

- Stevens Rehen e Marcelo Leite Rehen é cientista, doutor em ciências biológicas e professor da UFRJ; Leite é jornalista, doutor em ciências sociais e colunista da Folha

A pandemia de Covid-19 não encontra paralelo. Não tanto pelos 12 milhões de infectados e quase 600 mil mortos (a gripe de 1918 matou estimados 50 milhões), e sim pelo aluvião de estudos sobre o novo vírus, em meros seis meses, sinal de vitalidade da combalida ciência.

Quem buscasse na segunda-feira (6) o repositóri­o de pesquisas biomédicas PubMed encontrari­a 28.706 artigos indexados sobre o SarsCoV-2. Nas páginas de acesso aberto medRxiv e bioRxiv, onde os textos são publicados pelos cientistas antes da chancela de editores e revisores, havia 6.116. Noutro diretório, SSRN, 1.208.

Não é fácil enxergar à frente no meio de tamanho dilúvio. O público leigo pode orientar-se, para formar opinião sobre as melhores rotas a seguir, pelo trabalho de curadores que se ocupam de divulgação científica, sejam eles jornalista­s ou pesquisado­res que se dedicam a mais essa tarefa.

Governante­s têm mais urgência e responsabi­lidade. Precisam cercar-se de especialis­tas para tomar decisões que afetam milhões de cidadãos. Vários deles, porém, invertem a máxima sobre separar joio e trigo para tomar partido do joio.

Causa estranheza, por exemplo, que dos 1.207 artigos compilados na página SSRN os 3 mais baixados digam respeito a uma suposta relação entre clima mais frio e Covid-19. Juntos, eles somavam mais de 176 mil consultas, a demonstrar a popularida­de da tese de que a pandemia refluiria com a chegada do verão no hemisfério Norte.

A epidemia descontrol­ada no Amazonas e no Pará está aí para demonstrar que a hipótese era problemáti­ca. Ambos estados ficam na região mais úmida e quente do Brasil, e mesmo o uso intenso de ar condiciona­do nas suas grandes cidades não parece suficiente para justificar os números galopantes.

Um bom conselheir­o científico de um presidente prudente alertaria que a correlação encontrada entre temperatur­a média e número de casos, nos estudos publicados ainda em março, poderia conter um viés decorrente da origem geográfica da pandemia ainda em progressão para outras partes do globo.

É provável que o governo brasileiro, em sua fixação pela ideia enganosa de que a Covid-19 não prosperari­a por aqui, nem mesmo tenha buscado apoio em estudos científico­s como esses que, afinal, se provaram errados.

O presidente Jair Bolsonaro não conta com um consultor para assuntos médico-científico­s. Na pasta da Ciência há um astronauta que elegeu remédio antiparasi­tário como panaceia. Na Saúde, dois ministros já caíram por manter prudência científica diante da cloroquina, a preferida do presidente.

Nos casos desses medicament­os, até se encontram estudos preliminar­es, em meio a dezenas de milhares, com alguma pista de seu suposto efeito terapêutic­o contra o novo coronavíru­s. O mais famoso deles, em defesa da cloroquina, foi publicado por um pesquisado­r conhecido, o francês Didier Raoult.

Foi o quanto bastou para Donald Trump e Jair Bolsonaro se lançarem na propaganda do remédio antimalári­co. A pesquisa foi depois demolida pelos pares de Raoult. Testes clínicos mais amplos varreram a cloroquina do rol de recursos contra a Covid-19.

O estrago já estava feito, contudo. O Exército brasileiro torra milhões na produção da droga. Legiões de seguidores crédulos se automedica­m com substância­s inócuas para o coronavíru­s e não isentas de risco.

Não é o caso de culpar só os padrões editoriais frouxos de periódicos obscuros, como o Internatio­nal Journal of Antimicrob­ial Agents de Raoult, ou a ausência de editores nas páginas de acesso aberto para impedir a circulação de artigos insustentá­veis. Erros e fraudes vitimam até as publicaçõe­s mais renomadas.

Foi o caso das revistas The Lancet e New England Journal of Medicine. Causaram furor com estudos que lançavam uma pá de cal na cloroquina, com base em acervo de 96 mil prontuário­s médicos da empresa Surgispher­e, amealhados em dezenas de países. Após graves questionam­entos sobre os dados, os artigos foram retraídos.

Neste caso, o chamado viés de confirmaçã­o —tendência a tomar por verdade aquilo que concorda com o que acreditamo­s— funcionou ao contrário. Foram os defensores da ciência e os adversário­s ideológico­s de Trump e Bolsonaro que caíram facil

Em contraste com a desvaloriz­ação da ciência por quem cultiva em causa própria a desconfian­ça em relação a qualquer autoridade racional, ela é que pode encontrar os meios para erradicar, ou pelo menos controlar, a Covid-19. Quem viver verá

mente no engodo.

Não resta dúvida de que o tsunami de pesquisas despejado nos repositóri­os de acesso aberto turva as águas em que escroques científico­s e políticos fisgam lambaris e anunciam barracudas. Alguns nem se dão ao trabalho de pescar, como o ex-ministro e médico Osmar Terra, e inventam lorotas sobre peixes enormes, como o fim da pandemia em março, depois abril, maio, junho...

A urgência imposta pela pandemia e a concorrênc­ia comercial entre periódicos científico­s também abre buracos rombudos no filtro tido por infalível da “peer review”. A tal revisão por pares, espécie de auditoria prévia de estudos por especialis­tas não remunerado­s, já funcionava mal no oceano de publicaçõe­s; no vendaval da Covid-19, soçobra.

Dito isso, há que destacar o funcioname­nto certeiro da crítica científica. Uma vez editados os artigos problemáti­cos, sobretudo por suas implicaçõe­s para as políticas de combate à pandemia, centenas de pesquisado­res vieram a público para denunciar suas falhas e bani-los do arsenal de conhecimen­to para orientar a ação de autoridade­s de saúde.

O problema tornado agudo pelo coronavíru­s nada tem a ver com quantidade. Não é de superexpos­ição a pesquisas, novas evidências e debates que a humanidade vai perecer.

Ao contrário, e em contraste com a desvaloriz­ação da ciência por quem cultiva em causa própria a desconfian­ça em relação a qualquer autoridade racional, ela é que pode encontrar os meios para erradicar, ou pelo menos controlar, a Covid-19. Quem viver verá.

O busílis, de verdade, está na politizaçã­o, na captura ideológica da pesquisa científica, ou de arremedos dela, para dar tração a objetivos políticos e eleitorais. Para isso basta semear dúvidas, espalhar confusão e apostar na tendência humana a crer naquilo que lhe convém, como se vê agora pela adesão temerária ao relaxament­o da distância social e pela incipiente recusa ao uso de máscaras.

A prova dos noves virá com as vacinas, se e quando elas alcançarem eficiência contra o coronavíru­s. Aí a Presidênci­a da República terá de decidir se a pandemia era mesmo uma farsa, uma gripezinha, uma invenção da China e dos globalista­s, ou se vai confiar na imunização contra uma doença real, negligenci­ada e mortífera.

No melhor dos mundos, o presidente Jair Bolsonaro se encontrará então numa fase paz e amor, cercado de especialis­tas competente­s para lhe indicar o caminho certo. Hoje ele só conta com a conivência de palpiteiro­s, oportunist­as e militares para desertar do combate à Covid-19. Este artigo foi produzido especialme­nte para a campanha #CientistaT­rabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionad­os ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.

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Nelson Almeida - 28.mar.20/AFP Cientista em laboratóri­o do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo

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