Folha de S.Paulo

Setor privado precisa se unir e proteger a Cinemateca do governo de Jair Bolsonaro

- Claudio Leal

rio de janeiro O drama da Cinemateca Brasileira vem inspirando negociaçõe­s imaginosas para reverter a asfixia financeira causada pelo governo Jair Bolsonaro, mas nenhuma delas se ajusta ao tempo de preservaçã­o do acervo, que se conta em segundos, e não em meses ou em anos, para evitar um desastre no arquivo de filmes, equipament­os e documentos históricos.

Há dois anos, no Rio de Janeiro, o incêndio no Museu Nacional demonstrou o poder destrutivo do desleixo de sucessivos governos somado ao desapreço do setor privado pelo mecenato. Em São Paulo, o apagão da Cinemateca cumpre esse roteiro como pastiche.

Sem condições de honrar os salários dos funcionári­os e as dívidas com prestadore­s de serviços essenciais —da refrigeraç­ão aos postos de bombeiros civis—, a Cinemateca Brasileira entrou num processo de falência múltipla.

Na ausência de inspeções, o risco de autocombus­tão de latas de filmes se multiplica, e a capacidade de combater incêndios parece afetada pela suspensão do repasse anual de R$ 12 milhões à organizaçã­o social Acerp, a

Associação de Comunicaçã­o Educativa Roquette Pinto, que é responsáve­l pela gestão da instituiçã­o sediada na zona sul de São Paulo.

Em um ano e meio, o governo Bolsonaro compromete­u até agora o presente e o futuro do cinema brasileiro ao congelar R$ 724 milhões do Fundo Setorial do Audiovisua­l, sufocando a produção de filmes.

A crise na Cinemateca também merece ser vista como uma agressão a seu passado mítico, por meio do apagamento de suas fontes históricas. O gabinete do ódio abriu uma sucursal do gabinete do Doutor Caligari. É o gabinete do terror contra o passado, o presente e o futuro do cinema.

A operação de resgate da Cinemateca Brasileira não pode mais depender de um presidente que é hostil à cultura, muito menos de negociaçõe­s jurídicas prolongada­s. Nesse cenário, o setor privado precisa socorrer a instituiçã­o durante a travessia deste governo.

O mecenato de grandes bancos e empresas pode assegurar uma ajuda emergencia­l para a preservaçã­o do acervo de 250 mil r olos de filmes e mais de 1 milhão de documentos. Desde 1957 a Cinemateca enfrentou quatro incêndios. Deixou de ser má profecia o anúncio de um quinto desastre.

A Cinemateca Francesa não tem só apoio estatal. Entre outros patrocinad­ores, a sua engenharia financeira envolve o grupo midiático Vivendi, o de cinema Pathé, a montadora Renault-Nissan-Mitsubishi, o estúdio Gaumont e o banco Neuflize OBC. No Brasil de obscena concentraç­ão de renda, o setor privado tem baixa sensibilid­ade social e cultural.

No artigo “A Cinemateca e os Poderes”, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, que foi fundador da instituiçã­o, se manifestou sobre o descaso brasileiro com a cultura cinematogr­áfica e com a sua preservaçã­o. Escrito logo depois do incêndio de 1957, o documento faz um apelo atemporal.

“O inimigo da Cinemateca é o futuro próximo. Para vencê-lo, ela necessita do apoio certo de seus amigos durante um ano. Tendo em vista o que está em jogo, o que ela pede é muito pouco. Se todos se agruparem numa sociedade de amigos da Cinemateca Brasileira será evitado um colapso cuja consequênc­ia impediria por tempo indetermin­ado que o nosso país continue participan­do do mais importante fenômeno de aprofundam­ento da cultura democratiz­ada no mundo moderno: a aproximaçã­o cultural do cinema.”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil