Setor privado precisa se unir e proteger a Cinemateca do governo de Jair Bolsonaro
rio de janeiro O drama da Cinemateca Brasileira vem inspirando negociações imaginosas para reverter a asfixia financeira causada pelo governo Jair Bolsonaro, mas nenhuma delas se ajusta ao tempo de preservação do acervo, que se conta em segundos, e não em meses ou em anos, para evitar um desastre no arquivo de filmes, equipamentos e documentos históricos.
Há dois anos, no Rio de Janeiro, o incêndio no Museu Nacional demonstrou o poder destrutivo do desleixo de sucessivos governos somado ao desapreço do setor privado pelo mecenato. Em São Paulo, o apagão da Cinemateca cumpre esse roteiro como pastiche.
Sem condições de honrar os salários dos funcionários e as dívidas com prestadores de serviços essenciais —da refrigeração aos postos de bombeiros civis—, a Cinemateca Brasileira entrou num processo de falência múltipla.
Na ausência de inspeções, o risco de autocombustão de latas de filmes se multiplica, e a capacidade de combater incêndios parece afetada pela suspensão do repasse anual de R$ 12 milhões à organização social Acerp, a
Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, que é responsável pela gestão da instituição sediada na zona sul de São Paulo.
Em um ano e meio, o governo Bolsonaro comprometeu até agora o presente e o futuro do cinema brasileiro ao congelar R$ 724 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual, sufocando a produção de filmes.
A crise na Cinemateca também merece ser vista como uma agressão a seu passado mítico, por meio do apagamento de suas fontes históricas. O gabinete do ódio abriu uma sucursal do gabinete do Doutor Caligari. É o gabinete do terror contra o passado, o presente e o futuro do cinema.
A operação de resgate da Cinemateca Brasileira não pode mais depender de um presidente que é hostil à cultura, muito menos de negociações jurídicas prolongadas. Nesse cenário, o setor privado precisa socorrer a instituição durante a travessia deste governo.
O mecenato de grandes bancos e empresas pode assegurar uma ajuda emergencial para a preservação do acervo de 250 mil r olos de filmes e mais de 1 milhão de documentos. Desde 1957 a Cinemateca enfrentou quatro incêndios. Deixou de ser má profecia o anúncio de um quinto desastre.
A Cinemateca Francesa não tem só apoio estatal. Entre outros patrocinadores, a sua engenharia financeira envolve o grupo midiático Vivendi, o de cinema Pathé, a montadora Renault-Nissan-Mitsubishi, o estúdio Gaumont e o banco Neuflize OBC. No Brasil de obscena concentração de renda, o setor privado tem baixa sensibilidade social e cultural.
No artigo “A Cinemateca e os Poderes”, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, que foi fundador da instituição, se manifestou sobre o descaso brasileiro com a cultura cinematográfica e com a sua preservação. Escrito logo depois do incêndio de 1957, o documento faz um apelo atemporal.
“O inimigo da Cinemateca é o futuro próximo. Para vencê-lo, ela necessita do apoio certo de seus amigos durante um ano. Tendo em vista o que está em jogo, o que ela pede é muito pouco. Se todos se agruparem numa sociedade de amigos da Cinemateca Brasileira será evitado um colapso cuja consequência impediria por tempo indeterminado que o nosso país continue participando do mais importante fenômeno de aprofundamento da cultura democratizada no mundo moderno: a aproximação cultural do cinema.”