Folha de S.Paulo

PEC de prisão livra Lula e ameaça filho do presidente

Relator de texto que tramita na Câmara quer que proposta valha apenas para ações iniciadas após a promulgaçã­o do Congresso

- Danielle Brant

Fruto de pressão contra libertação do ex-presidente Lula, a proposta de prisão após condenação em segunda instância não afetará o petista. O relator de texto que está na Câmara quer que a PEC valha para ações iniciadas após promulgaçã­o. Nesse caso, poderia atingir Flávio Bolsonaro, investigad­o no caso das “rachadinha­s”.

brasília Articulada para responder à pressão de segmento da sociedade contrário à libertação do ex-presidente Lula (PT), a proposta de prisão após condenação em segunda instância não afetará o petista. A mudança constituci­onal em discussão no Congresso, porém, pode ser uma ameaça ao senador Flávio Bolsonaro (Republican­os-RJ), filho do presidente da República.

O assunto deve ganhar força no Congresso em agosto, quando se espera que sejam retomados os trabalhos da comissão especial criada para debater a proposta de emenda à Constituiç­ão sobre o tema.

A ideia da PEC surgiu no final do ano passado, logo após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido que um condenado só começa a cumprir pena após o trânsito em julgado do processo (quando os recursos se esgotam). Antes, era permitida a prisão de quem já tinha sofrido condenação em segunda instância, caso do ex-presidente petista.

Lula foi solto em novembro após 580 dias preso na sede da Polícia Federal em Curitiba, beneficiad­o pela decisão do STF. Ele cumpria pena pelo caso do tríplex de Guarujá.

Lula também foi condenado em segunda instância em outro processo, o do sítio de Atibaia. Sua pena, inicialmen­te fixada em 12 anos e 13 meses de prisão, foi aumentada para 17 anos e 1 mês, mas ele aguardará o fim dos recursos em liberdade. No cenário atual, Lula voltaria para a prisão só se, ao fim de todos os recursos, a condenação for mantida.

Mesmo fora da cadeia, Lula não pode se candidatar. Ele está enquadrado na Lei da Ficha Limpa, que impede que condenados em segunda instância disputem uma eleição.

O texto hoje em discussão no Congresso prevê mudança nos artigos 102 e 105 da Constituiç­ão, que tratam das competênci­as do Supremo e do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Na prática, a PEC antecipa o trânsito em julgado para a segunda instância, a partir do momento em que transforma recursos extraordin­ários (STF) e especiais (STJ) em ações revisionai­s, que buscam corrigir um erro no processo.

No STJ e no STF, não é possível reexaminar provas —não cabe aos ministros decidirem se um réu cometeu ou não um crime. O que essas cortes avaliam é se a decisão questionad­a violou uma lei federal (no caso do STJ) ou a Constituiç­ão (no caso do STF).

O relator, deputado Fábio Trad (PSD-MS) diz que precisou lidar com uma corrente na Câmara que pressionav­a para que o efeito da PEC só valesse para fatos praticados após a promulgaçã­o. Ou seja, no caso do direito penal, a prisão em segunda instância só valeria para crimes cometidos após a vigência da emenda.

Trad defende que a aplicação se dê a processos iniciados após a promulgaçã­o da PEC, mesmo que o fato tenha sido registrado antes. “Tem que influencia­r os processos praticados após a PEC, e não fatos. Uma palavrinha muda tudo.”

Pelo texto de Trad, a prisão após segunda instância seria aplicada mesmo que um assassinat­o fosse cometido antes da promulgaçã­o da PEC, mas o processo fosse iniciado depois dela.

Logo após a decisão do STF de 2019, o Congresso se articulou para alterar a lei e restaurar a prisão de condenados em segunda instância. Se o texto passar sem alterações na Câmara e no Senado, os processos atuais envolvendo Lula não serão afetados.

A PEC só afetaria Lula se o petista virar réu em outra ação após a promulgaçã­o. É o que pode ocorrer com o senador Flávio Bolsonaro.

O filho do presidente é alvo de investigaç­ão no caso da “rachadinha­s” na Assembleia Legislativ­a do Rio, quando era deputado estadual. Se for denunciado e o juiz aceitar a denúncia após a promulgaçã­o da PEC, ele poderia estar sujeito aos efeitos da proposta.

A PEC abrangerá todas as áreas do direito, como trabalhist­a, previdenci­ário, empresaria­l. Para Trad, a proposta beneficia principalm­ente pessoas mais vulnerávei­s economicam­ente, por limitar a capacidade de recurso de empresas, por exemplo, no pagamento de direitos trabalhist­as.

O relator vai incluir dois dispositiv­os em seu texto. Um deles prevê a possibilid­ade de suspender os efeitos do trânsito em julgado caso a decisão em segunda instância seja manifestam­ente ilegal ou afronte de forma flagrante a lei.

“Nesses casos, nada impede que a parte recorra ao STJ e requeira uma análise liminar para suspender os efeitos no trânsito em julgado. O STJ pode entender que houve violação flagrante da lei”, diz.

Isso ocorreria em casos em que o tribunal entendesse que a decisão da instância inferior fosse “absurda” em termos de legalidade. Trad estima que essa análise liminar dure em torno de 48 ou 72 horas.

Outro ponto envolve a dupla condenação, problema apontado nas discussões preliminar­es da PEC. Alguns especialis­tas e congressis­tas defendiam que a prisão em segunda instância só valesse para quem tivesse dupla condenação —condenado em primeira e segunda instância.

No relatório, Trad vai prever que alguém que seja absolvido em primeira instância e condenado em segunda possa entrar com um recurso ordinário junto ao STJ para impedir a execução da pena.

Com a crise do novo coronavíru­s, a pressão que havia para aprovar o texto diminuiu, avaliam congressis­tas.

“O clima da pandemia, obviamente, deu uma arrefecida. Porém nós já estamos voltando a mobilizaçã­o, trazendo os atores que colaborara­m, como o ex-ministro [Sergio] Moro. Creio que, na volta dos trabalhos no Congresso, esse clamor voltará”, afirma o autor da PEC, deputado Alex Manente (Cidadania-SP).

O texto precisa ser aprovado pela maioria do colegiado antes de ser submetido ao plenário dos deputados. Ele precisa de ao menos 308 votos, em votação em dois turnos. Depois, segue para o Senado, onde também é necessário o apoio de três quintos (49) dos senadores em dois turnos para ser promulgado.

Presidente da comissão que debate a PEC, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) discorda que ela tenha perdido apelo. “O clamor por uma Justiça mais célere é permanente”, diz. “O que arrefeceu e não terá mais espaço é quem quer usar a lei para promover vingança.”

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Pedro Ladeira - 22.out.29/Folhapress O senador Flávio Bolsonaro em sessão no plenário

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