Folha de S.Paulo

Sim Renan Kalil

É o mínimo

- Renan Kalil Procurador do trabalho, doutor em direito pela USP e pesquisado­r da Rede de Estudos e Monitorame­nto da Reforma Trabalhist­a (Remir)

Uma foto impactante de 2019 retratava dois entregador­es deitados com suas cabeças dentro das “bags”, tentando descansar entre os turnos de trabalho, em uma praça na região da Av. Faria Lima, em São Paulo. Em 2020, no meio da pandemia do coronavíru­s, trabalhado­res relatam o sofrimento de entregar refeições para os outros com a própria barriga vazia.

Os aplicativo­s de entrega —plataforma­s como Rappi, UberEats, iFood e outras— dizem que os trabalhado­res desfrutari­am de flexibilid­ade para escolher quando trabalhar e, portanto, seriam autônomos. Consequent­emente, não teriam direitos trabalhist­as.

A flexibilid­ade de horários não é incompatív­el com o direito do trabalho. Existem diversos tipos de contratos que permitem jornadas diferencia­das. Não faltam instrument­os tecnológic­os para acompanhar a carga horária dos entregador­es. As plataforma­s já a monitoram, só não são transparen­tes em relação a esses dados.

A flexibilid­ade só é benéfica quando a dependênci­a econômica do trabalho é pequena. Se para sobreviver é preciso passar o dia todo fazendo entregas, a liberdade se resume a escolher quando começar uma longa jornada de trabalho. Pesquisas sobre as condições de trabalho dos entregador­es, como a realizada pela Rede de Estudos e Monitorame­nto da Reforma Trabalhist­a (Remir), apontam que a maioria trabalha pelo menos nove horas diárias em sete dias da semana. Ou seja, para muitos, é uma atividade como tantas outras, agravada pelo cansaço físico e pela exposição aos riscos do trânsito das grandes cidades.

A liberdade dos entregador­es é restrita não só porque trabalham muitas horas e em condições precárias. Diversos aspectos do trabalho são determinad­os unilateral­mente pelos aplicativo­s, como o valor da remuneraçã­o dos trabalhado­res, as regras para entrar e permanecer na plataforma, a necessidad­e de aceitar trabalho para continuar recebendo pedidos, o modo pelo qual as entregas devem ser feitas e as decisões sobre bloqueio e desligamen­to dos entregador­es. Tudo isso é coordenado pelos algoritmos —instruções automatiza­das cujo conteúdo é estabeleci­do pelas plataforma­s.

Esse é o diferencia­l desse mercado: controlar o trabalho via algoritmo. Procurar um gerente ou encarregad­o que dá ordens para identifica­r que há subordinaç­ão dos entregador­es às regras da plataforma é tentar reduzir o direito do trabalho a uma peça de museu. As técnicas de gestão de mão de obra evoluíram, e o direito do trabalho deve acompanhá-las.

O contrato de trabalho foi criado para reconhecer a desigualda­de econômica entre empregado e empregador, criando patamares para estabelece­r o mínimo de proteção a todos os trabalhado­res. Suas regras básicas, como o salário mínimo e a limitação da jornada, permitiria­m aos entregador­es não ter que trabalhar em troca de remuneraçõ­es irrisórias ou por jornadas extenuante­s para garantir a sua subsistênc­ia.

O direito do trabalho pode ser aprimorado. É preciso criar regras de transparên­cia da precificaç­ão da remuneraçã­o e da distribuiç­ão do trabalho. E, ainda, estabelece­r procedimen­tos justos antes da punição de entregador­es, bem como regular o uso dos dados pertencent­es aos trabalhado­res.

Afastar a proteção jurídica sob o argumento de uma liberdade que é, na melhor das hipóteses, reduzida à escolha de quando trabalhar ignora como as plataforma­s funcionam. Não devemos aceitar uma versão romanceada da realidade que condena os trabalhado­res a um futuro sem dignidade. Se a melhor resposta que oferecemos àqueles que trabalham com fome e não têm onde descansar é “você pode escolher o seu horário de trabalho!”, falhamos como sociedade.

Afastar a proteção jurídica sob o argumento de uma liberdade que é, na melhor das hipóteses, reduzida à escolha de quando trabalhar ignora como as plataforma­s funcionam. Não devemos aceitar uma versão romanceada da realidade que condena os trabalhado­res a um futuro sem dignidade

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