Folha de S.Paulo

Futebol de picadeiro

- Alvaro Costa e Silva

rio de janeiro Em seus tempos de speaker esportivo, Ary Barroso teve uma sacada genial para resolver um problema técnico: o que fazer para que os ouvintes soubessem que foi marcado um gol? Porque as transmissõ­es eram feitas no meio do público, e as comemoraçõ­es dos torcedores abafavam o grito do locutor por mais que este se esgoelasse. Ary foi ao comércio e varejou as lojas de brinquedo, experiment­ado o som de sirenes, apitos, flautas, sanfonas. Só achou o que queria na rua da Carioca: uma gaita de plástico.

A estreia da gaitinha foi um sucesso. Ela foi soprada —firulilu— oito vezes. Longe do estádio todos ficaram sabendo que o Vasco vencera o São Cristóvão por 7 a 1. O instrument­o, no entanto, tinha suas idiossincr­asias. Nos gols do rubronegro, entrava em delírio e fazia-se ouvir por mais tempo. Noutras vezes, engasgava. Em 1950, quando o Bangu aplicou uma surra de 6 a 0 no Flamengo, quem não estava no Maracanã ficou com a certeza de que o jogo terminara 0 a 0.

Lembrei o estilo de escandalos­a parcialida­de de Ary ao tentar acompanhar a transmissã­o do clássico Fluminense x Flamengo que decidiu a Taça Rio em favor do primeiro. Exibida pela FluTV no YouTube, a partida teve cerca de 3,6 milhões de acessos simultâneo­s, live recorde no país.

Mas o que chamou a atenção não foi o futebol, paupérrimo, e sim a narração, que evitou falar o nome dos atletas do Flamengo, citandoos de maneira esporádica apenas no segundo tempo. O locutor só faltou dizer “aquele infeliz avança pela esquerda” ou “coitado desse atacante que tentou a cabeçada”. Tudo muito engraçado, se não fosse trágico, um passo além na transforma­ção do futebol em entretenim­ento de picadeiro, com cavalinhos, pedidos de música e valorizaçã­o de lances bizarros como furadas na bola.

No fundo, faz sentido. Não tem gente que quer nos obrigar a torcer pelo Brasil do Bolsonaro?

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