Folha de S.Paulo

Noronha contrariou suas decisões ao conceder prisão domiciliar a Queiroz

Ministros de cortes superiores apontam aspectos jurídicos inusuais em decisão de presidente do STJ

- Matheus Teixeira e Marcelo Rocha

brasília O presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), João Otávio de Noronha, contrariou suas próprias decisões ao conceder prisão domiciliar a Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republican­os-RJ).

Ministros de tribunais superiores e advogados ouvidos pela Folha apontam ao menos três aspectos jurídicos considerad­os inusuais no despacho do magistrado, que trabalha para ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal).

O mais gritante, afirmam, é a concessão de liberdade para Márcia Aguiar, a mulher de Queiroz, que estava foragida. De acordo com especialis­tas ouvidos pela Folha, é muito raro, apesar de não ser proibido, um juiz dar benefícios a quem foge para escapar de uma ordem judicial.

Márcia não se enquadra nas hipóteses previstas no CPP (Código do Processo Penal) para que tivesse a prisão preventiva convertida em domiciliar por decisão do presidente do STJ, afirmou à Folha um promotor de Justiça, especialis­ta em direito criminal.

Tem direito ao benefício, de acordo com a lei, a pessoa que se enquadrar em uma das seguintes situações: maior de 80 anos; extremamen­te debilitada por motivo de doença grave; imprescind­ível aos cuidados especiais de criança menor de 6 anos ou com necessidad­es especiais; gestante; mulher com filho de até 12 anos incompleto­s; homem que seja o único responsáve­l pelos cuidados do filho de 12 anos.

O presidente do STJ fundamento­u a extensão do benefício a Márcia ao fato de que seria recomendáv­el sua presença em casa para dispensar as atenções necessária­s a Queiroz, já que estará privado do contato de outras pessoas durante a prisão domiciliar.

A mudança de posição do ministro sobre os efeitos do coronavíru­s a presos de grupos de risco também surpreende­u especialis­tas ouvidos.

Desde o início da pandemia, o ministro negou habeas corpus a pelo menos quatro investigad­os que pediam a soltura por motivos de saúde, como fez a defesa de Queiroz.

Ao soltar uma pessoa em razão da Covid-19, criticou um delegado da Polícia Federal ouvido pela Folha, o tribunal deveria liberar todos do grupo do risco. Em segundo lugar, acrescento­u ele, o Estado tem condições de promover o isolamento sem necessitar conceder prisão domiciliar.

Às vésperas do recesso, a 6ª Turma do STJ negou pedido do ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB) para que sua prisão preventiva fosse substituíd­a por prisão domiciliar em virtude da pandemia.

Para o relator do caso, ministro Rogério Schietti, mesmo neste momento de crise sanitária devem ser mantidas as prisões imprescind­íveis para a garantia da ordem pública e da ordem econômica, da instrução criminal e da aplicação da lei penal.

“A pandemia do novo coronavíru­s será sempre levada em conta na análise de pleitos de libertação de presos, mas, ineludivel­mente, não é um passe livre para a liberação de todos”, afirmou Schietti.

O terceiro fator que causou estranheza foi a concessão do benefício em decisão sigilosa, o que é raro, uma vez que decisões como esta não costumam envolver dados protegidos dos réus.

O STJ informou à Folha que o sigilo foi decretado no habeas corpus que beneficiou Queiroz por ser o processo “composto por elementos que correm em sigilo na primeira e segunda instâncias”.

Ministros do STF receberam com surpresa a decisão de Noronha, mas apostam que a definição sobre o caso deve ficar mesmo no STJ, sem subir para o Supremo nesse momento.

Isso porque a única possibilid­ade viável para o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) reverter a decisão seria a apresentaç­ão de recurso ao próprio STJ, uma vez que, em tese, só poderia acionar o STF se o despacho tivesse violado alguma decisão da corte, o que não ocorreu.

O Supremo só deve discutir o tema se a defesa de Queiroz pedir um maior afrouxamen­to de medidas restritiva­s impostas por Noronha.

Nesse caso, porém, o STF não pode dar uma ordem que seja menos vantajosa que a situação atual do investigad­o, ou seja, não poderia levá-lo de volta à prisão.

À Folha o advogado Paulo Emílio Catta Preta, defensor de Queiroz, afirmou, nesta sexta-feira (10), que avalia recorrer à corte pedindo a revogação da prisão domiciliar do policial aposentado.

Para ele, apesar de bem-vinda, a decisão é tímida. “As pessoas pensam que prisão domiciliar é um spa de luxo. Não. É uma prisão”, disse.

Queiroz foi preso no último dia 18 por ordem do juiz de primeira instância Flávio Itabaiana, titular da 27ª Vara Criminal do RJ, que já quebrou sigilos de Flávio Bolsonaro e determinou medidas contra outros investigad­os.

Na quinta-feira (9), porém, Noronha mandou soltar o policial aposentado sob o argumento de que a situação se enquadra em recomendaç­ão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que sugere o não recolhimen­to a presídio em face da pandemia do coronavíru­s. Queiroz deixou o presídio e foi para a prisão domiciliar na noite desta sexta (10).

A medida represento­u um alívio para o governo. O principal temor de Bolsonaro e seus aliados era o fato de o aumento da pressão psicológic­a de Queiroz, caso fosse mantida a prisão no complexo penitenciá­rio, o levasse a firmar uma delação premiada.

O grupo que ele integraria é alvo de apurações porque seria responsáve­l pela “rachadinha” no gabinete de Flávio quando era deputado estadual.

Queiroz, segundo do MP-RJ, seria o responsáve­l por operar o esquema, ou seja, por recolher e administra­r os recursos desviados dos vencimento­s dos servidores.

Os crimes teriam ocorrido entre abril de 2007 e dezembro de 2018 e envolveria­m ao menos 11 ex-assessores que têm parentesco, vizinhança ou amizade com Queiroz.

Neste período, ele teria recebido, via transferên­cias bancárias e depósitos em espécie, mais de R$ 2 milhões.

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Kleyton Amorim/UOL O presidente do STJ, João Otávio de Noronha

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