Folha de S.Paulo

A vida e a vida de Jair Bolsonaro

Torcida por sua morte esconde desejo de borrar raízes do extremismo de direita

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

Sempre leio Hélio Schwartsma­n, concordand­o e discordand­o, porque aprecio a qualidade de seu texto e divirto-me com sua férrea lógica consequenc­ialista. Águias também fazem voos rasantes, mas dessa vez ele passou do ponto: “Por que quero que Bolsonaro morra” (Folha, 8 de agosto) é uma traição a meus princípios e, mais importante, uma dupla traição à filosofia do próprio Schwartsma­n.

O argumento de que a morte de Bolsonaro por Covid-19 salvaria vidas é uma aplicação restritiva, quase infantil, do consequenc­ialismo. Há mais entre o céu e a terra do que a pandemia. O exame especulati­vo sobre as implicaçõe­s de hipotético faleciment­o presidenci­al não pode se cingir à ótica exclusivis­ta da epidemiolo­gia.

Bolsonaro enfrenta a encruzilha­da decisiva de seu (des)governo. Na base social remanescen­te da extrema direita, que não é insignific­ante, sua morte súbita teria o condão de salvá-lo da desmoraliz­ação, elevando-o a um pedestal inexpugnáv­el. O falso mito se tornaria, então, Mito.

A consequênc­ia mais ampla de sua morte biológica seria sua vida política eterna. Em torno da tumba de um Messias de cartolina, se reuniriam novas gerações de extremista­s dispostos a assombrar a democracia brasileira.

Eu, que não sou consequenc­ialista, não desejo a morte biológica de ninguém. Schwartsma­n, o consequenc­ialista, tem o dever lógico de torcer pela completa recuperaçã­o clínica do presidente, para que a crise em curso produza sua morte política. No horizonte do longo prazo, é isso que pouparia mais sofrimento­s e mais vidas.

A segunda traição reveste-se de maior gravidade. O consequenc­ialismo consequent­e precisa ser aplicado aos atos do próprio consequenc­ialista. À luz dessa lógica, Schwartsma­n não deveria ter dado publicidad­e ao seu desejo íntimo. O erro, nesse caso, estende-se à Folha, que tem o dever de proteger as fronteiras do discurso publicável .

Bolsonaro já torceu publicamen­te pela morte de FHC (por fuzilament­o) e de Dilma Rousseff (por infarto ou câncer). Quando um articulist­a de peso do maior jornal do país utiliza-se de linguagem paralela, está legitimand­o o discurso da barbárie. A coluna faz o debate público retroceder mais um degrau, rumo ao poço fétido habitado pelo olavo-bolsonaris­mo. Mas as consequênc­ias não se limitam a isso.

Teoricamen­te, sob a inspiração do Código de Hamurabi, Bolsonaro poderia invocar a lei de talião para declarar que torce pela morte de Schwartsma­n. Ao contrário dos leitores de Schwartsma­n, os seguidores fieis de Bolsonaro organizam-se como seita política, circulam armados por aí e pregam a cisão violenta com a ordem legal.

A previsível interpreta­ção do desejo presidenci­al por alguns deles como uma fatwa, mais ou menos nos moldes da proclamada pelo aiatolá Khomeini contra o escritor Salman Rushdie, mudaria radicalmen­te o patamar das ameaças oficiais à liberdade de imprensa.

Em “A morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, sua obra mais sofisticad­a, Jorge Amado reflete sobre a hipocrisia. O venerável Joaquim Soares da Cunha, discreto funcionári­o público, morrera socialment­e aos olhos de seus familiares ao converter-se no cachaceiro boêmio Quincas Berro D’Água. A morte biológica do protagonis­ta propicia à família a vivência pública de um luto simulado, que oculta o profundo alívio causado pelo desapareci­mento da fonte de desonra. Suspeito que, atrás da torcida pela morte de Bolsonaro, esconda-se o desejo de borrar de nossas vistas as raízes da árvore do extremismo de direita.

Quando torce para o vírus resolver o impasse político, o racionalis­ta Schwartsma­n exercita uma espécie peculiar de pensamento mágico. Bolsonaro é, apenas, o pico emerso de uma montanha de dejetos históricos. O Brasil deve carregar o fardo da desonra, para aprender a mirar sua imagem no espelho —e matar politicame­nte a fonte do mal.

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