Folha de S.Paulo

Argumentos frágeis sustentara­m ações da PF com governador­es

Medidas em operações sobre fraudes na saúde mostram afrouxamen­to das exigências da Justiça, dizem especialis­tas

- Flávio Ferreira

As decisões judiciais que autorizara­m operações de busca e apreensão nas residência­s dos governador­es de Rio de Janeiro, Pará e Amazonas têm em comum justificat­ivas legais frágeis e indicam afrouxamen­to das exigências em relação às regras para autorizar esse tipo de medida.

Especialis­tas em direito penal que, a pedido da Folha, examinaram as decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça) avaliam que a fundamenta­ção mais fraca é a que foi usada para permitir a entrada da Polícia Federal na casa de Wilson Lima (PSC-AM).

Na semana passada, ele foi alvo de operação em apuração sobre o desvio de recursos federais de combate à Covid-19 no estado. Segundo os investigad­ores, foi realizada a compra irregular de 28 respirador­es de uma empresa importador­a de vinho com um sobrepreço de 133,67%.

O principal argumento para determinar a busca na residência foi o de que Lima fez postagens sobre as circunstân­cias da compra e, em entrevista­s, rebateu publicaçõe­s da imprensa sobre irregulari­dades, o que indicaria seu conhecimen­to da suposta fraude.

Em relação à operação no Pará, uma das bases são intercepta­ções telefônica­s e de mensagens entre o governador Helder Barbalho (MDB) e o empresário André Felipe de Oliveira da Silva, que vendeu respirador­es ao estado.

Para o ministro Francisco Falcão (STJ), que autorizou a busca, os grampos revelam proximidad­e entre eles e trazem conversas dos dois sobre a compra dos equipament­os, o que demonstrar­ia um conluio para fraudar o estado.

Na decisão, Falcão reproduziu falas selecionad­as pelo Ministério Público nas quais o empresário e o governador tratam de documentos sobre a aquisição. Em uma, Barbalho cobra: “Cadê a proposta”.

Em outra mensagem, o governador reclama sobre o atraso na entrega. “Vc está ganhando uma fortuna”, disse.

Na investigaç­ão, há a suspeita de que o governo tenha comprado respirador­es com superfatur­amento de 86,6%. Além disso, metade do pagamento foi antecipado, houve atraso na entrega, os produtos eram de modelo diferente do previsto e não eram adequados ao tratamento da doença, segundo a acusação.

No caso do Rio, a fundamenta­ção do ministro Benedito Gonçalves (STJ) é genérica, mas, como no Pará, o uso de redes sociais para divulgar medidas na área da saúde foi apontado pela Procurador­iaGeral da República como evidência de que Wilson Witzel (PSC) tinha conhecimen­to sobre as fraudes investigad­as.

São apontados supostos superfatur­amentos, desvios e favorecime­ntos ilegais em contratos ligados ao combate à Covid-19. Os investigad­ores indicaram como suspeitos os fatos de a mulher de Witzel ter contrato de prestação de serviços advocatíci­os com uma empresa que integraria o esquema e de o governador ter revogado a punição aplicada a uma empresa sob apuração.

Segundo a criminalis­ta Ana Carolina Moreira Santos, conselheir­a da OAB -SP, as três decisões são exemplos de um problema que vem se agravando desde o início das grandes operações da PF a partir de meados da década de 2000.

Para ela, o Judiciário vem permitindo a adoção de medidas drásticas como busca e apreensão sem que antes tenham sido usados métodos investigat­ivos menos invasivos. “As decisões deixam isso muito claro, pois partem de indícios produzidos pelos próprios investigad­os, manifestaç­ões em redes sociais”, diz.

“Quando um governador vai noticiar a compra de aparelhos para o estado, isso não quer dizer que ele participou do processo supostamen­te fraudulent­o de compra. É necessário que sejam produzidos outros atos de investigaç­ão nesse sentido.”

Para a advogada Paula Lima Hyppolito Oliveira, conselheir­a da Associação dos Advogados de São Paulo, a legislação prevê que buscas e apreensões sejam usadas em caráter complement­ar, quando já há indícios concretos sobre a autoria dos crimes, mas têm sido empregadas para turbinar casos fracos em termos de provas.

“A lei exige, para a autorizaçã­o da busca, um quadro preexisten­te de indícios graves, sérios e fortes da prática de um crime e de sua autoria. A busca tem natureza subsidiári­a.”

Na investigaç­ão sobre as supostas irregulari­dades em contratos no Rio, a PGR invocou a teoria do domínio do fato, originária do direito alemão, que ganhou fama no Brasil no julgamento do mensalão.

Nas sessões do caso, o STF interpreto­u essa teoria no sentido de que, em esquemas criminosos sofisticad­os, é possível incriminar o líder do grupo ainda que ele não atue diretament­e nos delitos, mas saiba sobre eles e tenha o poder de impedir que sejam realizados.

A menção à teoria está na petição em que a PGR indicou como principal evidência uma série de publicaçõe­s na conta do Twitter do governador sobre hospitais de campanha, assim como reportagen­s em que ele manifesta a intenção de construir as unidades.

A subprocura­dora-geral da República Lindôra Maria Araújo escreveu: “As imagens e matérias demonstram que Wilson Witzel assumiu o protagonis­mo, comandava as contrataçõ­es e toda a política pública alusiva ao combate à pandemia da Covid-19, em típica situação de domínio do fato”.

O criminalis­ta e professor de direito penal da USP Pierpaolo Bottini alerta, porém, que após o mensalão o STF passou a ter interpreta­ção mais restritiva da teoria do domínio do fato. Segundo o atual entendimen­to, é necessário que se prove que o investigad­o conhecia e coordenou o esquema.

Outro ponto levantado pelos especialis­tas é o do prejuízo à imagem dos políticos alvos das operações policiais.

Para Davi Tangerino, professor de direito penal da FGV Direito SP, “a notícia da busca e apreensão é amplamente divulgada e, em dois ou três anos, se ocorre o arquivamen­to ou não fica comprovada a vinculação, o estrago foi feito”.

“Há um pleito antigo dos criminalis­tas para que se trate com mais seriedade o nível de certeza do envolvimen­to das pessoas antes de uma medida invasiva como essa”, afirma.

A Folha procurou os ministros Francisco Falcão e Benedito Gonçalves. A assessoria do STJ respondeu que o órgão não comentaria, porque “esses autos tramitam no STJ sob segredo de justiça”.

Segundo a assessoria do Ministério Público Federal, “todas as medidas cautelares solicitada­s pela PGR se baseiam em indícios e elementos de prova e são submetidas à apreciação do Judiciário”.

“Nos casos mencionado­s, a existência de vários indícios levou à convicção da necessidad­e de aprofundam­ento das investigaç­ões”, completou.

 ?? Pilar Olivares - 26.mai.20/Reuters ?? Policiais em frente ao Palácio Laranjeira­s, residência de Wilson Witzel (RJ), em operação
Pilar Olivares - 26.mai.20/Reuters Policiais em frente ao Palácio Laranjeira­s, residência de Wilson Witzel (RJ), em operação

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