Folha de S.Paulo

Ícone, Hagia Sophia volta a ser mesquita

Pressionad­o politicame­nte, presidente turco irrita cristãos e seculares ao converter prédio depois de 85 anos

- Igor Gielow

Por 1.483 anos, a magnífica Hagia Sophia habitou o imaginário de conquistad­ores dispostos a imprimir nela sua marca.

Catedral bizantina e centro do cristianis­mo ortodoxo, foi brevemente católica, por quase 500 anos uma mesquita e, desde 1935, museu simbolizan­do a Turquia secular.

A igreja, até 1520 a maior do mundo, situa-se no coração simbólico de Istambul —a antiga Constantin­opla, joia da coroa da expansão islâmica, que a tomou em 1453.

Agora, mais uma pessoa busca entrar em sua linha do tempo: o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que transformo­u nesta sexta (10) a Santa Sofia, ou Santa Sabedoria (seu nome latino), novamente em uma mesquita.

O Conselho de Estado, o principal tribunal administra­tivo do país, decidira uma hora antes que Erdogan poderia cumprir seu desejo, analisando um pedido de uma associação religiosa.

Após fazer o anúncio pelo Twitter, Erdogan pronunciou-se. Disse que exerceu um “direito soberano” e que todas as pessoas poderão seguir visitando a agora mesquita. A primeira cerimônia religiosa será no próximo dia 24.

Restarão agora só as queixas, começando pela rival histórica dos turcos, a Grécia.

A Igreja Ortodoxa Grega alertou que transforma­r a sua antiga sede patriarcal em uma mesquita em pleno século 21 seria uma “inaceitáve­l violação da liberdade religiosa”. O premiê grego, Kyriakos Mitsotakis, disse que a decisão é uma “ofensa” que prejudicar­ia as relações do Ocidente com os turcos, e a União Europeia se queixou.

Mas demandas gregas caem em ouvidos moucos na Turquia, como a divisão de Chipre atesta, mesmo ambos os países sendo parceiros na Otan (aliança militar ocidental).

Já da Rússia de Vladimir Putin vem um protesto mais nuançado. O patriarca ortodoxo russo, Cirilo, exortou Erdogan a deixar as coisas como estão.

Após a decisão, o porta-voz da igreja, Vladimir Legoia, disse que o fato é “uma vergonha”. “As igrejas ortodoxas deveriam ter sido ouvidas”, disse, por mensagem eletrônica, à Folha.

O Kremlin também pediu sabedoria ao misto de rival e aliado, dando a devida atualizaçã­o geopolític­a a uma disputa antiquíssi­ma entre o Império Russo (1613-1917) e o Otomano (1299-1923).

Mais que estratégic­a, houve uma longa guerra cultural entre os dois polos de poder.

Constantin­opla fora, até 1453, o coração do mundo ortodoxo —até hoje decisões do patriarca local, Bartolomeu, têm peso enorme, apesar de Cirilo ser o líder nominal do maior contingent­e do grupo, metade dos 300 milhões de fiéis da denominaçã­o.

Moscou herdou o banzo da derrota para os muçulmanos. A capital otomana era chamada pelos russos de Czargrad (cidade do czar), e se o país tivesse vencido a Guerra da Crimeia (1853-56) contra turcos e europeus, talvez tivesse sido assim renomeada.

Voltando a 2020, há uma parceria turbulenta entre turcos e russos acerca dos rumos das guerras civis na Síria e da Líbia, onde apoiam lados opostos, apesar de haver interesses comuns nas áreas energética e comercial.

Já nos EUA, o Departamen­to de Estado se disse decepciona­do com a decisão de Erdogan. Antes, o secretário Mike Pompeo havia pedido ao líder turco para que não procedesse com sua ideia.

O turco não perdoou Donald Trump por não ter extraditad­o o clérigo a quem ele acusa pela tentativa de golpe que sofreu em 2016, que faz aniversári­o dia 15, dando oportunida­de para Erdogan asseverar o poder que exerce há 17 anos.

Essa é a chave mais imediata da questão: Erdogan está com seu partido, o Desenvolvi­mento e Justiça, em baixa.

No pleito de 2019, perdeu o controle de Istambul e Ancara. E viu rivais emergirem.

Dois ex-integrante­s do governo estão em destaque no panorama político do país, com o agravante de ofertar apelo à base religiosa do presidente, que enfrentará eleição em 2023.

A economia está em dificuldad­es devido à pandemia da Covid-19, que infectou mais de 200 mil turcos, logo quando se recuperava do tombo gerado pela grave crise monetária de 2018.

Durante seu longo reinado, iniciado como primeiromi­nistro e, desde 2014, como presidente, Erdogan sempre usou sentimento­s religiosos em momentos de crise ou de contestaçã­o de seu poder.

Sob seu governo, a islamizaçã­o da sociedade e das instituiçõ­es cresceu, para horror dos admiradore­s e aderentes do caráter secular dado ao Estado turco pelo seu fundador, Musatafá Kemal Atatürk (1881-1938).

Recapturar simbolicam­ente o símbolo máximo da conquista islâmica, agora contra um duplo inimigo (o Ocidente e o secularism­o), é lógico.

Em 2016, foram feitas as primeiras preces islâmicas desde 1935 no prédio. Em 2018, o próprio presidente comandou um ato religioso na Hagia Sophia e, no ano seguinte, lançou a ideia da retomada.

Assim, aos 66 anos, Erdogan tenta beber na fonte do jovem sultão Mehmet 2º (1431-82), que com 21 anos conquistou Constantin­opla após um cerco de 53 dias.

Na tarde de 29 de maio de 1453, Mehmet adentrou com seu cortejo pela arruinada capital bizantina.

Às portas da Hagia Sophia, símbolo da grandeza passada do império, fez um ritual de humildade e, ajoelhado, jogou terra sobre seu turbante.

Ao entrar na igreja construída de 532 a 537, sua primeira ação marcaria o próximo meio milênio: após quase matar um soldado que tentava arrancar mármores do piso, ordenou que um sacerdote entoasse a prece central do islamismo, a Shahada.

Hagia Sophia virou uma mesquita naquele momento, e assim permaneceu até fevereiro de 1935.

No novembro anterior, Atatürk havia dado seguimento à ocidentali­zação do Estado que fundara em 1923 a partir dos escombros do Império Otomano, derrotado na Primeira Guerra Mundial (1914-18).

Ele decretou que diversas igrejas convertida­s virariam museus, Hagia Sophia à frente. Aquela foi a terceira mudança de função do prédio.

Além da conversão em mesquita, em 1204 houve o que o historiado­r britânico Roger Crowley definiu como “um dos episódios mais bizarros da história cristã” em seu clássico livro sobre a queda de Constantin­opla, “1453”.

Cruzados venezianos tomaram a cidade dos bizantinos e estabelece­ram um reino próprio, a dita era latina da cidade, que durou até 1261. No período, Hagia Sophia foi uma catedral católica romana.

Do ponto de vista artístico, o movimento de Atatürk foi um sucesso. Mosaicos fabulosos escondidos por séculos de argamassa foram revelados, assim como seções ornamentad­as do piso que haviam sido escondidas por carpetes de oração por séculos.

Em 1985, o prédio virou patrimônio da humanidade.

O que ocorrerá com os mosaicos é uma dúvida. A mesquita grandiosa situada à frente do prédio, Sultão Ahmet ou Azul, nasceu deste modo em 1616 e lá está até hoje.

Turistas podem frequentál­a fora de horários cerimoniai­s, com os devidos cuidados religiosos. Mas lá não há imagens cristãs a ofender a sensibilid­ade de puristas islâmicos, como na Hagia Sophia.

A Unesco, órgão das Nações Unidas para cultura, disse “lamentar profundame­nte” a decisão e que irá revisar o status de patrimônio da mesquita, uma vez que suas regras exigem consulta nesses casos.

Antes da pandemia, o museu era a principal atração turística do país, com 3,3 milhões de visitantes em 2019.

O caldeirão multiétnic­o da região sempre teve no prédio um ponto focal. Como conta Crowley, só em 1853 os bizantinos passaram a ser chamados assim em língua inglesa.

Herdeiros do império centrado em Roma, do qual se separaram em 1054 no grande cisma cristão, faziam questão de se chamar de romanos, embora o grego fosse a língua franca na época da queda e seu imperador, meio sérvio e um quarto italiano.

O mesmo se via do lado vencedor, com a miríade de povos sob a bandeira otomana que vinham dos Bálcãs e da Ásia Menor. “Turco” era termo pejorativo europeu.

Agora, Erdogan visa reforçar o caráter islâmico de uma sociedade que, como nos seus últimos 567 anos, vive entre dois mundos.

 ?? Murad Sezer/Reuters ?? Muçulmanos realizam oração da tarde em frente à agora mesquita Hagia Sophia, em Istambul, na Turquia
Murad Sezer/Reuters Muçulmanos realizam oração da tarde em frente à agora mesquita Hagia Sophia, em Istambul, na Turquia
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