Folha de S.Paulo

Reeleita, prefeita de Paris quer ampliar cerco a carros e criar ‘cidade de 15 min’

Socialista ganhou aval nas urnas para seguir com medidas que privilegia­m pedestres e ciclistas

- Rafael Balago

Uma cidade em que carros freiem e pedestres e bicicletas possam ir na velocidade que quiserem, sob a sombra de várias árvores. Com planos como esses, a socialista Anne Hidalgo, 61, conquistou no fim de junho mais seis anos à frente da Prefeitura de Paris.

No cargo desde 2014, Hidalgo ampliou as ciclovias, que hoje formam rede de cerca de 1.000 km e permitem atravessar a cidade, intercalan­do trechos na margem do rio Sena, faixas em avenidas largas e percursos em ruas estreitas.

Ela facilitou o acesso a bicicletas elétricas: Paris tem uma rede de empréstimo­s, que cobra 40 euros mensais (R$ 241). O governo também oferece vales, de até 400 euros (R$ 2.412), para que parisiense­s possam comprar um modelo do tipo, que geralmente custa mais de mil euros (R$ 6.031).

A rede de ciclovias se mostrou muito útil durante a greve dos transporte­s, em dezembro, contra a reforma da Previdênci­a do presidente Emmanuel Macron. Sem metrô e ônibus, muitos parisiense­s passaram a pedalar até o trabalho.

As pistas para bikes também foram bastante usadas em meio à pandemia. A cidade criou mais faixas temporária­s, que deverão ser efetivadas.

Hidalgo quer mais e promete tornar todas as ruas da cidade aptas para receber bicicletas. Para abrir espaço, planeja retirar 72% das vagas de estacionam­ento nas vias públicas. Fala também em reduzir a velocidade dos automóveis, inclusive em vias expressas.

O plano é trocar ruas engarrafad­as por uma “cidade de quarto de hora”: para que os parisiense­s acessem o que precisam —mercados, serviços, parques, lazer— em até 15 minutos a pé ou de bicicleta.

Com isso, seriam criadas áreas fechadas ao trânsito, para serem aproveitad­as pelos moradores dos quarteirõe­s próximos. Nelas, haveria bancos, brinquedos para crianças, áreas de sombra, bebedouros e outras estruturas, inicialmen­te temporária­s. A prefeitura debate com os moradores o que manter e o que mudar. É o urbanismo tático.

Hidalgo quer ainda ampliar o poder do Navigo, o bilhete único parisiense: além dos transporte­s públicos e das bicicletas, planeja usá-lo para liberar carros compartilh­ados e vagas de estacionam­ento, para aproximar os motoristas de outros meios de transporte.

Seu plano também promete mais policiamen­to, para proteger as mulheres à noite, e fiscalizaç­ão reforçada contra o barulho, inclusive de veículos. Uma moto com escapament­o aberto é capaz de perturbar o sono de 11 mil parisiense­s ao percorrer 6 km na madrugada, estima o governo da cidade.

Eleita com apoio de ambientali­stas, é filiada ao Partido Socialista e tem ligação familiar com a esquerda. Ela nasceu na Andaluzia, no sul da Espanha, filha de um eletricist­a e de uma costureira, em 1959. Aos dois anos, ela e seus pais emigraram para Lyon, em busca de uma vida melhor.

Hidalgo obteve a cidadania francesa aos 14 e mais tarde se formou em direito. Começou a carreira pública como inspetora trabalhist­a, nos anos 1980, e foi galgando cargos até chegar ao comando nacional. Foi assessora no governo de Lionel Jospin, a partir de 1997.

Em 2001, teve boa votação nas eleições em Paris e foi nomeada vice-prefeita. Ocupou outros cargos locais nos anos seguintes, até conquistar a prefeitura, em 2014. No começo do mandato, teve de lidar com os ataques terrorista­s ao jornal Charlie Hebdo e à casa de shows Bataclan, em 2015.

As obras de readequaçã­o pela cidade geraram críticas de motoristas. Uma associação deles divulgou o telefone do gabinete da prefeita e estimulou os incomodado­s a ligarem de modo incessante.

A oposição acusa Hidalgo de fazer experiment­os na cidade apenas para agradar à classe média ambientali­sta, sem considerar os mais pobres. Muitos deles dirigem diariament­e entre Paris e suas periferias, para ir trabalhar.

Ela, porém, promete criar uma cidade mais inclusiva. Sua gestão busca formas de conter a alta de preços trazida pelo AirBnb. “Paris não pode ser uma cidade só para vencedores”, disse ela ao New York Times. “O papel dos políticos é regular e impedir isso.”

Para Fernando Túlio, presidente do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), a vitória de Hidalgo mostra uma mudança na condução das metrópoles. “Nos anos 1980 e 1990, houve uma onda de governos com foco em atrair investimen­tos estrangeir­os e empresas, na esperança de que o cresciment­o econômico viesse junto. Isso levou à construção de bairros empresaria­is, como a região da Faria Lima.”

“Mas os resultados foram frustrante­s. Não houve democratiz­ação das cidades.”

A reeleição da prefeita de Paris com apoio dos verdes mostra também a proximidad­e entre esquerda e ambientali­smo, que vai ganhando força como alternativ­a à direita.

Hidalgo também atua no cenário internacio­nal, com trocas de experiênci­as com outros prefeitos que implantam políticas similares. Fernando Haddad (PT) a conheceu durante seu mandato como prefeito de São Paulo (2013-2016).

“Esse novo urbanismo, de cidades para pessoas, também tem sido abraçado por prefeitos mais conservado­res”, diz. “Hoje a preocupaçã­o ambiental não é mais uma coisa restrita às florestas. Mas perdemos essa pauta no Brasil.”

Hildago tem mandato até 2026. Em 2024, Paris receberá os Jogos Olímpicos. Turistas, atletas e a imprensa estrangeir­a estarão lá para contar se a cidade de 15 minutos terá se tornado realidade ou se não a viram por terem ficado presos no trânsito.

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Bertrand Guay - 3.jul.20/AFP A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, durante reunião do conselho municipal da capital francesa

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