O que sabemos sobre a letalidade do vírus 6 meses após a 1ª morte?
Além das comorbidades, fator social tem peso importante, mostra estudo com 10.926 mortes ligadas à Covid-19
são carlos (sp) Seis meses após o registro da primeira morte pelo novo coronavírus, no surto inicial da Covid-19 na China, a maior parte dos fatores de risco que podem fazer com que a doença seja letal está relativamente clara, mas alguns detalhes ainda são complicados de elucidar.
O cenário é mais ou menos o mesmo desenhado desde que o vírus Sars-CoV-2 começou a causar sintomas graves em milhares de pessoas. Idosos, obesos, membros do sexo masculino e os que já sofrem de problemas como doenças cardíacas, diabetes, câncer e mau funcionamento dos rins correm risco consideravelmente maior de morrerem.
É o que mostrou o maior estudo sobre o tema feito até agora, com 10.926 mortes relacionadas ao coronavírus no Reino Unido. Ben Goldacre, da Universidade de Oxford, e Liam Smeeth, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, garimparam dados num universo com mais de 17 milhões de pacientes atendidos no sistema público britânico, o que aumenta a confiabilidade estatística.
Além das chamadas comorbidades (problemas de saúde que o paciente já tinha antes de ser infectado), fatores sociais também foram importantes para as mortes na amostra britânica, a exemplo do que tem sido visto no Brasil e em outros países. Os membros dos 20% mais pobres da população corriam, no Reino Unido, quase o dobro do risco de morte. Esse aumento é comparável ao verificado entre as pessoas que não são classificadas como brancas (11% da amostra britânica).
“Não verificamos se isso se dá por falta de acesso a atendimento médico ou por questões genéticas, mas levamos em conta que há uma prevalência mais alta de problemas médicos entre as pessoas dessas etnias”, explica Goldacre.
Por outro lado, os dados, surpreendentemente, não indicaram risco aumentado de morte para fumantes. “Pessoas que fumam têm probabilidade maior de desenvolver problemas cardíacos, por exemplo. Levamos em conta as doenças do coração dos pacientes na nossa análise. É possível que, ao fazer isso, tenhamos deixado em segundo plano um aumento real do risco causado pelo fumo”, diz.
Como a Covid-19 se espalhou com rapidez, sem que a maioria dos casos, com sintomas leves ou assintomáticos, fosse detectada oficialmente, números oficiais sobre infectados e mortes não mostram de modo preciso a letalidade.
Com cerca de 70 mil mortos para 1,8 milhão de casos confirmados, a letalidade oficial no Brasil é de 4%, abaixo da americana (4,6%) e chinesa (5%). Análises mostram, no entanto, que muito mais gente teve contato com o vírus. Com isso, a letalidade real deve estar entre 0,5% e 1%.
“O leigo vê esse dado e acha que 0,5% é nada. Na verdade, é muito alto”, explica o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP. “A mortalidade anual no Brasil hoje é da ordem de 5 mortes por 1.000 habitantes, 7 por 1.000 habitantes. Ou seja,
Análise levou em conta mais de 10 mil mortes ligadas à doença
0,5%. É como se você jogasse aí uma coisa nova com praticamente o mesmo peso”, diz o pesquisador, para quem a melhor maneira de calcular o real impacto seria calcular o excesso de mortes —ou seja, as mortes acima do limiar esperado todos os anos—, dado que não sofre com o problema da subnotificação.
Segundo Lotufo, embora as mortes tendam a ser maiores nos grupos com fatores de risco, outra conclusão importante é que todos os grupos e todas as faixas etárias estão sujeitos a contrair o vírus. Isso faz com que, mesmo entre pacientes jovens e saudáveis, o número de mortes e casos graves seja considerável, simplesmente porque não existia imunidade alguma.
Além disso, as diferentes manifestações severas da doença reforçam a ideia de que ela é multissistêmica, diz o especialista da USP —ou seja, afeta gravemente múltiplos tecidos e órgãos do corpo.
A Covid-19, portanto, não é uma doença respiratória, mas algo que pode afetar rins, coração e circulação no cérebro.