Folha de S.Paulo

OPINIÃO Especialis­tas de Whatsapp disseminam tratamento­s sem comprovaçã­o científica

- Alexandre Cunha Infectolog­ista do Hospital Sírio Libanês e do Hospital Brasília, é consultor do Sabin Medicina Diagnóstic­a

Como disse Cobb, o personagem de Leonardo Di Caprio, em “A Origem” (Inception, 2010), a coisa mais infecciosa que existe não é um vírus ou um parasita, é uma ideia. Uma vez que se instala na mente, é quase impossível removê-la. Há algo ainda potencialm­ente mais perigoso: apaixonar-se por ela.

A paixão por uma ideia faz com que as pessoas rejeitem de imediato qualquer evidência que contrarie o conceito básico pré-formulado e vejam as contestaçõ­es como ataques pessoais ou movidas por motivos escusos. O apaixonado passa a empreender uma cruzada quixotesca contra moinhos de vento, não importa o quão obviamente fantasioso seja tudo. E sempre há vários Sanchos a acompanhá-lo.

Com a pandemia do Covid-19 estamos assistindo a cenas até pouco tempo inimagináv­eis. Centenas de médicos que nunca trataram moléstias infecciosa­s se tornaram especialis­tas, basicament­e com conhecimen­tos adquiridos em grupos de WhatsApp onde são trocadas “experiênci­as pessoais”.

Contrarian­do as recomendaç­ões dos que estão acostumado­s há décadas a tratar doenças virais com acometimen­to pulmonar grave (infectolog­istas, pneumologi­stas, intensivis­tas), aventuram-se a estabelece­r protocolos para a Covid-19 sem embasament­o na literatura científica.

Mesmo com todas as sociedades de especialid­ades médicas das áreas tendo se manifestad­o contra o uso das medicações fora de protocolos de pesquisa, estes seguem investindo contra os “inimigos” do tratamento e acusando os que agem com cautela e não fazem os pacientes de cobaias de “não quererem salvar vidas”.

A grande maioria dos árduos defensores dos kits de tratamento precoce propaga não apenas um efeito benéfico do tratamento, mas resultados surpreende­ntes.

As afirmações são feitas basicament­e pela experiênci­a pessoal dos participan­tes dos “grupos”, onde relatam seus “bons” resultados. Daí já se nota uma ingenuidad­e quase infantil: para uma doença em que 80% das pessoas são assintomát­icas ou sintomátic­as leves, 95% não precisam de hospitaliz­ação e menos de 1% morrem, as chances são enormes de que o paciente melhore, não por causa do tratamento, mas apesar dele.

Tratei pessoalmen­te centenas de pessoas com dipirona e os resultados foram maravilhos­os e nem por isso vou fazer lives divulgando seus fantástico­s efeitos antivirais. Os defensores do tratamento precoce esquecem a importânci­a de comparar seus dados com os de pacientes não tratados.

O efeito de Dunnig Krugger é muito evidente neste grupo. Esse experiment­o social realizado na década de 90 demonstrou que quanto menos um indivíduo conhece sobre determinad­o assunto mais tem convicção sobre sua sapiência no ramo.

Nesta epidemia, assistimos a longos vídeos de uma médica ultrassono­grafista (importante especialid­ade de diagnóstic­o, mas que não trata doença alguma) falar com propriedad­e dos efeitos antivirais da ivermectin­a e fazer recomendaç­ões de tratamento. Em alguns minutos, vemos informaçõe­s bizarras como “na África não há Covid porque usam ivermectin­a para tratar outras doenças” sem a menor comprovaçã­o de correlação causal nessa afirmação.

Depois do faleciment­o da cloroquina, derrotada por inúmeros estudos científico­s demonstran­do sua ineficácia como prevenção, em uso precoce ou tardio, há de se eleger um novo salvador da pátria.

A irracional­idade da abordagem do dito “tratamento precoce” se percebe quando a cada dia aparecem mais candidatos que se somam ao “coquetel”, numa manifestaç­ão de “não sabemos o que estamos fazendo, então vamos fazer um pouco de tudo”. Cloroquina, azitromici­na, zinco, vitamina D, ivermectin­a, nitazoxani­da, anticoagul­ante e corticóide. Algum desses deve funcionar, então administre­mos todos. Nenhuma preocupaçã­o com efeitos adversos.

São incontávei­s os casos de medicament­os seguros e baratos que quando usados em algumas doenças especifica­s ou em combinação com outros com os quais não foram estudados causam grandes danos à saúde.

Esquecem-se os colegas que temos muito a fazer para os que realmente precisam, e não para a grande maioria que não precisa, que teria melhora espontânea e está sendo submetida a tratamento­s sem eficácia comprovada.

Inúmeros são os casos de pacientes que tomaram os “kits de tratamento precoce” desde o primeiro dia de doença e evoluíram gravemente. Estes são observados pelos profission­ais que estão realmente na linha de frente, atendendo, presencial­mente, pacientes de Covid-19. Os que atendem pacientes leves e assintomát­icos, por vídeo, ou mensagem, do conforto de suas casas, não veem esses casos.

Alguém em sã consciênci­a moraria num prédio construído por um engenheiro químico, que acha que sabe construir um prédio porque é engenheiro tal qual o civil? Alguém acometido por doença cardíaca seguiria conselhos de um grupo formado por infectolog­istas, dermatolog­istas, cirurgiões, e oftalmolog­istas para tratar sua doença se esses conselhos fossem contra o que recomendam cardiologi­stas e sociedades de cardiologi­a?

Esse é o universo distópico em que vivemos atualmente. Especialis­tas formados pelo WhatsApp, disseminan­do tratamento­s sem a mínima comprovaçã­o cientifica para pacientes desesperad­os. Mais um triste efeito colateral da pandemia. Nossa única esperança é que um bom Sancho tente convencer os Quixotes de que são moinhos de vento e não dragões. Mas se Cobb estiver certo, esse esforço será inútil.

Depois do faleciment­o da cloroquina, derrotada por inúmeros estudos científico­s demonstran­do sua ineficácia como prevenção, em uso precoce ou tardio, há de se eleger um novo salvador da pátria

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