Folha de S.Paulo

Com cloroquina, ‘kit Covid’ gera confronto entre médicos no país

Florianópo­lis (SC) é o retrato da polarizaçã­o em torno da aplicação de mediamento­s sem comprovaçã­o de eficácia

- Cláudia Collucci

são paulo A pandemia do novo coronavíru­s despertou um confronto entre médicos. De um lado os que defendem o tratamento de casos iniciais da Covid-19 com remédios sem comprovaçã­o de eficácia, como a cloroquina, a hidroxiclo­roquina associada ou não à azitromici­na, a ivermectin­a, além de vitaminas, no que já é chamado de “kit Covid”. Do outro, profission­ais que alegam não haver comprovaçã­o cientifica das medicações.

A polarizaçã­o tem se acirrado com a defesa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que insiste no uso da hidroxiclo­roquina, antes e depois de divulgar na terça (7) que está com Covid-19.

Não existe medicament­o com eficácia comprovada em nenhuma fase da doença do novo coronavíru­s, que já infectou mais de 12 milhões de pessoas no mundo.

A cidade de Florianópo­lis (SC) é o retrato da polarizaçã­o em torno do “kit Covid”. Circulam na cidade dois manifestos médicos: um com 210 assinatura­s de profission­ais pedindo que os medicament­os sem eficácia comprovada sejam prescritos nas fases iniciais da doença, e outro, com 680 nomes (370 de SC e 310 de outros estados), não recomendan­do o uso das terapias na infecção pelo novo coronavíru­s.

O grupo favorável ao kit reconhece que não existem fortes evidências científica­s sobre benefícios do tratamento precoce. “Mas esse momento exige que façamos o tratamento conforme o que temos de evidências disponívei­s”, diz a carta em defesa do uso das medicações, que foi entregue ao governo do estado.

Já o grupo contrário, que tem entre os signatário­s associaçõe­s de bioética, de virologia e de saúde coletiva, alerta que, além da falta de comprovaçã­o na Covid, o uso da hidroxiclo­roquina traz riscos de arritmias e parada cardíaca.

Lembra também que cerca de 80% das pessoas com a doença terão apenas sintomas leves e moderados, independen­temente do tratamento prescrito no início da doença. A ideia do grupo é tornálo um movimento nacional de resistênci­a ao uso de terapias sem evidência na pandemia.

Após ser pressionad­o pelo grupo favorável ao “kit Covid” para tornar obrigatóri­o o tratamento, o prefeito de Florianópo­lis, Gean Loureiro (DEM), alinhado com a decisão do CFM (Conselho Federal de Medicina), decidiu que os médicos do município terão autonomia na prescrição.

Segundo o infectolog­ista Filipe Perini, que faz parte do comitê de enfrentame­nto à pandemia na capital catarinens­e, as únicas medidas comprovada­mente eficazes são aquelas baseadas em testagem, identifica­ção, isolamento e monitorame­nto dos infectados, além de uma boa estrutura hospitalar para os casos graves.

“É a receita que tem funcionado no mundo todo. Se a gente tem pouco recurso, esse é o lugar que tem que colocar, não em medicações que não têm clareza de benefício e com potencial risco. Mesmo que seja barata [a cloroquina], não é só isso. São recursos humanos envolvidos, tempo, logística”, diz Perini.

Para ele, ao insistir na direção contrária das evidências, Bolsonaro acirra a tensão entre os médicos, pressiona gestores públicos e confunde a população.

“Será que ele está bem porque usou cloroquina ou porque 80% das pessoas vão ficar bem mesmo?”, questiona.

O Ministério da Saúde regulament­ou o uso da hidroxiclo­roquina, mas hospitais como o Albert Einstein (SP) recomendam que os médicos não receitem a medicação. A orientação veio após o FDA (agência americana que regula os fármacos) ter revogado o seu uso para Covid-19.

Segundo Perini, o negacionis­mo das evidências desestabil­iza os estados e municípios que resistem em não adotar tratamento­s não comprovado­s e, ao mesmo tempo, estimula outros a distribuir medicament­os até para uma suposta prevenção da doença.

Jurandir Frutuoso, secretário executivo do Conass (Conselho Nacional de Secretário­s da Saúde), diz que, desde o início da pandemia, esse confronto sobre o uso de medicações sem evidência tem preocupado muito os gestores de saúde. “Seu maior dano foi embotar [enfraquece­r] a discussão sobre o essencial na pandemia.”

Em Balneário Camburiú (SC), a mudança forçada do protocolo de tratamento pela prefeitura, que passou a incluir ivermectin­a, azitromici­na e cloroquina, provocou a saída de pelo menos três médicos do comitê que coordena as ações de combate ao coronavíru­s na cidade. Eles se opuseram à decisão.

Em Itajaí (SC), a prefeitura começou nesta terça (7) a distribuir ivemerctin­a — remédio usado para sarna, piolho e alguns parasitas intestinai­s, como estrongilo­ides e oxiúros— como tratamento precoce e prevenção da Covid. A medida provocou manifestaç­ões contrárias de médicos.

O medicament­o já custou R$ 4,4 milhões aos cofres públicos em compra emergencia­l e está sendo distribuíd­o em um centro de eventos da cidade. Em dois dias, 9.000 pessoas haviam recebido a medicação.

Em Porto Alegre (RS), tem circulado um guia de tratamento, assinado por 18 médicos. No documento que leva o brasão gaúcho, são sugeridos associaçõe­s de remédios de acordo com a fase da doença. Entre as drogas, estão a hidroxiclo­roquina, a cloroquina, a azitromici­na e ivermectin­a, além de zinco, vitaminas C e D.

Em resposta, representa­ntes de quatro sociedades médicas gaúchas (infectolog­ia, reumatolog­ia, terapia intensiva e medicina de família) enviaram ofício ao Conselho Regional de Medicina pedindo a apuração de eventual infração ética. “O documento se propõe a mimetizar um documento da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, gerando confusão entre médicos do estado”, diz.

Além disso, as entidades apontam como potencial infração ética a recomendaç­ão de intervençõ­es terapêutic­as que não possuem evidências de eficácia e segurança.

Na capital gaúcha, da lista sugerida pelo grupo, apenas a ivermectin­a está disponível na rede pública. Mas a orientação da Secretaria Municipal da Saúde é que seja prescrita apenas para tratamento de verminoses. Em nota técnica, a pasta alerta que a droga não tem eficácia comprovada na Covid-19.

“Mas mesmo assim as pessoas prescrevem. A gente tem visto um consumo grande nas nossas farmácias [públicas]. O médico tem autonomia mas tem responsabi­lidade sobre o que está prescreven­do”, afirma o secretário municipal da Saúde, Pablo Stürmer.

Para ele, não é surpresa ver profission­ais assumindo condutas sem embasament­o científico. “É um desafio mostrar que, às vezes, não fazer nada é proteger o paciente. Há uma cultura de intervir mesmo quando não sabe se funciona”, completa.

Estudo liderado pelo cardiologi­sta Luis Claudio Correia e publicado no Journal of Evidence-Basead Health Care, vincudado à Escola Bahiana de Medicina, mostra que há um “efeito pandêmico” por trás dessas decisões médicas irracionai­s.

Foram ouvidos 370 médicos sobre a prescrição da hidroxiclo­roquina para Covid-19. A propensão em prescrevê-la foi alta, variou entre 37% a 89%, de acordo com a gravidade da doença.

“Será que ele [o presidente Jair Bolsonaro] está bem porque usou cloroquina ou porque 80% das pessoas vão ficar bem mesmo? Filipe Perini infectolog­ista que faz parte do comitê de enfrentame­nto à Covid-19 em Florianópo­lis (SC)

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Bruna Costa/DP Foto/Folhapress Idoso recebe cesta básica na zona norte da capital pernambuca­na; prefeitura fez doações a forrozeiro­s, quadrilhei­ros e outros profission­ais da cultura, e a seus familiares; setor é um dos que mais sofre por causa da pandemia

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