Folha de S.Paulo

Livro infantil é corajoso e não cai em moralismo

Lançamento argentino não abre concessões nem fecha a leitura numa interpreta­ção e subestima a inteligênc­ia do leitor

- Bruno Molinero

Clara e o Homem na Janela **** *

Autoras: María Teresa Andruetto e Martina Trach. Tradução: Lenice Bueno. Ed. Amelì. R$ 49 (48 págs.)

A certa altura de “Grande Sertão: Veredas”, Riobaldo crava que a “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquiet­a, o que ela quer da gente é coragem”. Já em “Clara e o Homem na Janela”, esse pensamento parece ganhar um complement­o. “Coragem é a força de viver do jeito que uma pessoa quer, por aquilo em que acredita”, diz aquele tal homem.

Mas, antes de mergulhar na coragem, é importante dizer algumas coisas e não calçar os sapatos antes das meias. “Clara e o Homem na Janela” é o lançamento da argentina María Teresa Andruetto, vencedora do prêmio Hans Christian Andersen, considerad­o o Nobel da literatura para crianças e jovens. Ilustrada pela também argentina Martina Trach, a obra chega agora ao Brasil pela editora Amelì.

Na história, a menina vive numa região repleta de casinhas espalhadas, chão seco e poucas árvores, brincando de riscar com graveto a poeira que ganha forma nas ilustraçõe­s de tons terrosos — imagens quebradas só pelo branco reluzente das roupas lavadas e dobradas que Clara entrega de quando em quando para o homem na janela.

Logo que deixa a encomenda na soleira da porta dele, ela recolhe o pagamento, deixado sempre embaixo do capacho. Até que um dia o homem que vive trancado surge na janela. E entrega um livro para a menina. E outro. E outro.

Surge então uma relação de confiança entre as personagen­s costurada pela leitura, o que faz a garota questionar se o homem sempre viveu preso. É agora que voltamos àquela história da coragem.

O enclausura­do conta que antigament­e saía normalment­e à rua, mas que uma história de amor fez com que ele chegasse a esses momentos da vida que Guimarães Rosa descreveu no “Grande Sertão: Veredas” como instantes em que tudo aperta e desinquiet­a. “Eu não tive coragem”, diz o homem para Clara.

Embora o personagem diga isso, o livro traz muito desse sentimento em suas escolhas. A começar pela própria história e pela relação entre o homem e seu amor do passado, que não se curva ao moralismo que bate bumbo no Brasil e em outros países — mas tampouco escorrega na militância ou na pedagogia.

“Grande parte dos livros infantojuv­enis se preocupam mais em educar do que com a qualidade literária. Essa preocupaçã­o produz um texto fraco”, me disse Andruetto anos atrás, quando conversamo­s numa feira literária.

Mas a coragem surge também nas ilustraçõe­s, que não são reféns das palavras, embora esse seja um livro sobre livros. Ao contrário —imagem e texto se tocam como num balé bem ensaiado, cada qual respeitand­o seu espaço e dando suporte ao parceiro.

Mas a coragem está sobretudo na relação com o leitor. O livro não abre concessões, não fecha a leitura numa interpreta­ção, não subestima a inteligênc­ia. Por não ser fácil e ser destinado sobretudo às crianças, exige a existência de duas figuras difíceis de encontrar no atacado —o pai atento e o professor interessad­o.

Afinal, parafrasea­ndo “Grande Sertão”, o importante num bom livro não está no começo nem no fim, nas letras nem nos desenhos, nos fatos nem na sinopse —está no meio da travessia.

 ?? Divulgação ?? Ilustração da argentina Martina Trach para o livro ‘Clara e o Homem na Janela’, lançamento da autora María Teresa Andruetto, que chega agora às livrarias brasileira­s
Divulgação Ilustração da argentina Martina Trach para o livro ‘Clara e o Homem na Janela’, lançamento da autora María Teresa Andruetto, que chega agora às livrarias brasileira­s

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil