Folha de S.Paulo

Feijoada com sabor de broxada

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Meu filho de 7 anos adora comida de avião.

Eu, na idade dele, ainda não havia viajado pelo ar. Sonhava poder traçar um macarrão a 36 mil pés de altitude.

Ainda caio, de vez em quando, no conto do avião. Poucos anos atrás, num voo da Singapore, fui fisgado por um menu de meia dúzia de coquetéis no serviço da classe econômica.

Pedi um singapore sling, em homenagem à bandeira da companhia e, óbvio, ele estava intragável. A fórmula original leva gim, licor de cereja e outras bebidas doces. Já deve ser enjoativa o bastante. O copo plástico que eu recebi da comissária continha algo parecido com Ki-Suco.

Também, o que eu esperava? Que houvesse um barman, cortando limões para a caipirinha, ao lado da cabine de comando? Aquele era o drinque possível, e o possível nem sempre é aceitável.

Serviço de bordo só tem um ponto positivo: a expectativ­a com a viagem. O misto-morno da Latam, para o meu Pedro, equivale a encontrar a avó em Vitória.

Analisada friamente, a experiênci­a de comer dentro de um avião é um lixo. A refeição em si é pífia, mas o que pega mesmo é o canhestro da coisa. Falta de espaço para as pernas, para os braços e para os alimentos na bandeja; sachês e talheres plásticos e potinhos disso e daquilo e um marmitex com o prato principal; a tripulação passando com um carrinho de lixo para recolher tudo no final.

As refeições em bares e restaurant­es tendem, na ressaca da pandemia da Covid-19, a ficar parecidas com o jantar de avião.

O rigor sanitário mata a espontanei­dade de uma saída para comer ou tomar todas com os amigos.

Hoje, no almoço, teremos o primeiro teste paulistano em horário de pico. Como a prefeitura vetou a operação após as 17h, o que houve durante a semana foi a frequência utilitária de quem trabalha na rua.

Será uma estreia de gala, com a sagrada feijoada do sábado. A primeira na nova era.

Vila Madalena em furor. Talvez dê ruim, como deu no Leblon. Espero que não. Se tudo der certo, o almoço terá sabor de broxada, de frustração.

Para começar, há o medo. Não há como deixá-lo em casa.

No restaurant­e/bar, há de se lidar com: garçons paramentad­os como especialis­tas em desarmar bombas químicas, sal em sachê, pimenta em sachê, azeite em sachê, mesas interditad­as ao redor, tira máscara para dar um gole, põe máscara de volta, tensão quando o garçom se aproxima demais, limpeza hospitalar quando cai um grão de arroz na mesa, uma força-tarefa para desempeste­ar a mesa na sua saída. E o pavor de ir ao banheiro.

Um boteco tradiciona­l do Rio instalou divisórias de acrílico no pequeno balcão, tornando-o parecido com aqueles parlatório­s de presídio que a gente vê nos filmes gringos. Vale a pena?

A tal da feijoada da nova era, a nova feijoada possível, me parece uma experiênci­a mais desenxabid­a do que jantar numa poltrona de avião.

Porque é um avião que não nos leva a lugar algum.

As refeições em bares e restaurant­es tendem a ficar parecidas com o jantar de avião

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