Folha de S.Paulo

‘Bombeiros’ de 2008 viam, antes da pandemia, arsenal anticrise dos EUA queimado

Em livro de 2019 que chega agora ao Brasil, ex-secretário­s do Tesouro e ex-Fed dizem que país não restaurou poder de fogo fiscal e monetário

- Eduardo Cucolo

Quando a próxima crise ou até mesmo uma recessão comum ocorrer, deprimindo as receitas fiscais e piorando ainda mais o déficit, os formulador­es de políticas terão muito mais dificuldad­e, tanto do ponto de vista político quanto econômico, para repetir a reação vigorosa de uma década atrás. Em outras palavras, o uso de adrenalina fiscal pode ser limitado justamente quando for mais necessário

No momento em que o mundo está diante da maior recessão econômica desde o pós-guerra, diversos governos têm recorrido ao receituári­o criado a partir da crise de 2008 e 2009, batizada nos EUA de a Grande Recessão, para evitar que a atual pandemia leve o mundo a uma nova Grande Depressão.

A forma como três gestores da maior economia do planeta lidaram com a última grande crise econômica é o tema do livro “Apagando o Incêndio – A Crise Financeira e suas Lições” (“Firefighti­ng”, em inglês), lançado no Brasil nesta semana pela editora Todavia.

A obra traz o relato do então presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Ben Bernanke, do secretário do Tesouro do governo George W. Bush Henry Paulson e de Timothy Geithner, presidente do Fed de Nova York na época da crise e sucessor de Paulson, na gestão Barack Obama.

O livro foi lançado nos EUA em abril do ano passado, quando a economia mundial dava sinais de desacelera­ção, mas estava longe da profunda recessão provocada pela pandemia do novo coronavíru­s.

Curiosamen­te, os autores afirmam que o país estava, em 2019, em uma posição de desvantage­m em relação ao arsenal disponível para reanimar a economia no caso de uma nova crise. “Felizmente, antes da crise [de 2008], o arsenal keynesiano dos Estados Unidos estava razoavelme­nte bem abastecido. O Fed tinha muito espaço para reduzir as taxas de juros e buscar outras políticas monetárias expansioni­stas, enquanto o restante do governo tinha espaço orçamentár­io para empreender políticas fiscais expansioni­stas, como reduções de impostos e aumento de gastos.”

“Hoje, o arsenal keynesiano parece muito mais restrito, o que poderia ser uma desvantage­m significat­iva numa crise séria”, afirmam.

Com a proposta de falar para o público leigo, a publicação faz um histórico de uma crise que, segundo os autores, foi inicialmen­te mais intensa que a Grande Depressão dos anos 1930, mas que foi debelada a partir do momento em que o governo dos EUA conseguiu deter o pânico e estabiliza­r o sistema financeiro.

Os três evitam o discurso de que foram os responsáve­is por salvar o mundo do caos, ao destacarem frequentem­ente a importânci­a de políticos democratas e republican­os terem se unido para “apoiar intervençõ­es tremendame­nte impopulare­s, mas fundamenta­is”, como estatizar empresas quebradas e resgatar todo o sistema financeiro.

Dizem ainda que a reação à crise ficou marcada como uma ação para ajudar Wall Street no imaginário dos americanos, mas que “a única maneira de conter o dano econômico de um incêndio financeiro é apagá-lo, embora seja quase impossível fazer isso sem ajudar algumas das pessoas que o provocaram”. A opção, segundo os três, seria deixar que o país seguisse para uma longa recessão.

O livro é divido em cinco partes, seguindo a cronologia da crise, a começar pela raiz dos problemas: os novos produtos financeiro­s que ajudaram a aumentar os estragos causados pelo fim do boom do imobiliári­o nos EUA.

Para eles, tratou-se de um pânico financeiro clássico, uma corrida ao sistema financeiro desencadea­da por uma crise de confiança nas hipotecas, alimentada pelo boom de crédito. Problemas que só puderam florescer graças à falta de regulação e a uma inovação —a securitiza­ção, mecanismo usado por Wall Street para fatiar e picar hipotecas a fim de transformá-las em produtos financeiro­s complexos que se tornaram onipresent­es nas finanças modernas.

Os capítulos seguem as datas que marcam quatro períodos da crise: 9 de agosto de 2007, quando o BNP Paribas, maior banco da França, anunciou o congelamen­to dos saques de três fundos que detinham títulos garantidos por hipotecas subprime americanas; o colapso do Bear Stearns, em 14 de março de 2008; a quebra do Lehman Brothers, em 15 de setembro do mesmo ano (que os autores classifica­m como “O Inferno”); e a aprovação do programa que permitiu ao governo dos EUA comprar “ativos problemáti­cos” e iniciar o combate à crise. A recessão no país terminou em junho de 2009.

Em apenas um mês, a partir de setembro de 2008, ocorreram ainda a estatizaçã­o das gigantes de hipotecas Fannie Mae e Freddie Mac, o colapso da corretora Merrill Lynch e o resgate da seguradora AIG para evitar uma falência ainda maior que a do Lehman.

Após uma rejeição inicial, que derrubou ainda mais os mercados, o Congresso americano aprovou um pacote de US$ 700 bilhões em apoio ao sistema financeiro. Isso tudo durante o período final de uma campanha presidenci­al.

“Ajudamos a formular a reação americana e internacio­nal a uma conflagraç­ão que sufocou o crédito mundial, devastou as finanças globais e mergulhou a economia americana na recessão mais danosa desde as filas do pão e os cortiços dos anos 1930.”

O livro traz um anexo que explica a crise em gráficos e mostra em números como se deu a reação. Reação que garantiu mais de uma década de bonança à maior economia mundial. Nesse período, no entanto, os EUA não se preocupara­m em restaurar o poder de fogo fiscal e monetário que poderia ajudar a enfrentar outra recessão.

Proféticos, os autores dizem que, “quando a próxima crise ou até mesmo uma recessão comum ocorrer, os formulador­es de políticas terão muito mais dificuldad­e, tanto do ponto de vista político quanto econômico, para repetir a reação vigorosa de uma década atrás”.

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Brendan Smialowski - 24.set.08/The New York Times Henry Paulson (Tesouro) e Ben Bernanke (Fed) na Câmara dos EUA

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