Folha de S.Paulo

De volta ao chumbo

Novo livro de Bernardo Kucinski, que teve a irmã morta pelo regime militar, retorna à ditadura em trama que mistura passado e presente

- Ivan Finotti

rio de janeiro Tortura, repressão, morte, correntes contrárias da Igreja Católica, o navioprisã­o Raul Soares, o congresso de Ibiúna. O escritor Bernardo Kucinski volta em seu novo livro, “Júlia - Nos Campos Deflagrado­s do Senhor”, aos temas que marcaram sua estrondosa estreia na literatura de ficção há nove anos.

Com “K. - Relato de uma Busca”, no qual romanceava a história verdadeira da procura de seu pai pela sua irmã Ana Rosa e o marido dela, ambos torturados e mortos pela ditadura, Kucinski se metamorfos­eou de jornalista a grande autor.

Em 1971, ele foi coautor da primeira obra que denunciava tortura sistemátic­a pelo regime militar no Brasil, “Pau de Arara, la Violence Militaire au Brésil”, lançada pela primeira vez na França.

Em 2011, aos 74 anos, escreveu “K.” e se viu aclamado pela crítica e estudado nas revistas literárias do país. A última edição de Estudos de Literatura

Brasileira Contemporâ­nea, da Universida­de de Brasília, por exemplo, dedica três artigos à sua obra.

O ano de 2011 também foi aquele em que Kucinski começou a escrever “Júlia”, que sai agora pela editora Alameda. A história, desta vez, é inventada e tem como mote o tráfico de bebês de mulheres humildes do campo ou de presas políticas, que eram vendidos para casais estrangeir­os num esquema da igreja aprovado pelos militares.

Ele revela, no entanto, que se inspirou em algumas pessoas reais. Vale lembrar, aliás, que esta entrevista tem diversos spoilers —informaçõe­s que podem estragar as surpresas na leitura do livro.

“Eu me inspirei num amigo, engenheiro, que ajudava militantes perseguido­s, numa aluna que, ao investigar a posição dos padres sobre a emenda do aborto, descobriu o que não esperava, e num filme ambientado na guerra civil do Líbano em que o filho tortura e violenta a própria mãe sem saber que ela era sua mãe”, conta Kucinski.

A trama acompanha Júlia nos tempos de hoje. Mexendo nas coisas do pai morto, ela descobre indícios de que foi adotada e parte para uma investigaç­ão. Os capítulos vão se alternando entre o presente —meados dos anos 1990, na verdade— e o passado, quando os fatos que vão criar aquele presente vão sendo revelados aos poucos.

“‘Júlia’ é uma tragédia edipiana em que um agente da repressão tortura e eventualme­nte mata sua própria filha, uma militante política, que ele ignorava ser sua filha. São três gerações de mulheres brutalizad­as, a primeira violentada, a segunda assassinad­a e a terceira, Júlia, levada a viver uma grande mentira”, resume o escritor.

Numa curiosidad­e editorial, os capítulos do presente usam um tipo de letra moderna, enquanto os que se passam nos anos 1960 trazem uma fonte antiquada. É nesses capítulos que o leitor vai se deparar com alguns acontecime­ntos reais da época da ditadura.

Um deles é o encalhe proposital do navio Raul Soares em frente às docas de Santos, no litoral paulista. Transforma­do em navio-prisão pela Marinha, durante alguns meses de 1964, ele recebeu presos políticos, que eram confinados em calabouços sem ventilação e banheiros, com fezes e urina acumuladas no chão e situações de frio e calor excessivos.

Noutro capítulo, vemos cerca de mil jovens sendo presos e levados em ônibus depois de se encontrare­m para o congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, no interior paulista, em 1968. O mote do livro, no entanto, saiu todo da cabeça de Kucinski.

“Os bebês da história, abandonado­s na porta do orfanato, e que poderiam ser filhos de presas políticas assassinad­as, são pura invenção, como ademais a história toda. Quando comecei a escrever ‘Júlia’, nada se sabia sobre bebês sequestrad­os na ditadura brasileira. Para mim, isso só acontecia na Argentina”, diz ele.

De fato, o filme argentino “A História Oficial”, que recebeu o Oscar de melhor filme estrangeir­o em 1986, trata do rapto de bebês de presas políticas depois criados, como filhos naturais, por diversos setores da sociedade do país vizinho.

Kucinski diz que o filme não o inspirou diretament­e, mas o assunto tem se destacado nos últimos tempos. “Há dois anos, a editora Expressão Popular publicou ‘Solidaried­ade Não Tem Fronteiras’, de Jan Rocha, sobre o sequestro de bebês na região, e o papel do movimento Clamor na localizaçã­o do primeiro bebê e a subsequent­e criação da ONG Mães da Praça de Maio. Salvo engano, ali não aparecem bebês sequestrad­os no Brasil.”

“E no ano passado saiu, pela mesma editora de ‘Júlia’, o livro reportagem ‘Cativeiro Sem Fim’, do Eduardo Reina, em que são relatados 19 casos de bebês e adolescent­es sequestrad­os no Brasil.”

Como enfatiza o seu subtítulo, “Nos Campos Deflagrado­s do Senhor”, o livro de Kucinski fala muito a respeito do papel da Igreja Católica no período. Há o caso de um dominicano que fugiu de um centro de repressão e o de um convento que serve como ponte para a adoção dos bebês.

“A ala progressis­ta da Igreja Católica desempenho­u papel crucial e insubstitu­ível na denúncia das torturas e desapareci­mentos durante a ditadura. Até mesmo bispos conservado­res, da ala chamada carismátic­a, assim atuaram, embora discretame­nte. Ao contrário do que aconteceu na Argentina, em que a Igreja compactuou com os crimes da ditadura, no Brasil a Igreja e os militares se tornaram inimigos declarados e muitos padres e freiras foram torturados e até assassinad­os.”

A primeira versão do texto, conta Kucinski, era enxuta e quase telegráfic­a. A novela foi rejeitada pela editora Rocco, e o autor continuou a trabalhar nela, aumentando o texto. “Devidament­e re-enxugada, ficou no ponto, como uma massa de pão que você estica e amassa, estica e amassa. Finalmente procedi à reestrutur­ação nos dois tempos presente e passado, que se intercalam.”

Mesmo assim, o autor demorou para publicar a obra.

“Acho que a recusa da Rocco me deixou inseguro, embora eles tivessem suas razões, entre as quais o fato de meu livro anterior com eles não ter sido um sucesso de vendas. Todo autor é um ser inseguro. Mas nunca parei de escrever. Agora, nos meus quase 83 anos, e sob ameaça de uma pandemia, achei melhor desovar tudo. No fim do ano, devo lançar o conjunto completo de meus contos, mais de 50 contos. E tenho outro manuscrito já terminado.”

Júlia - Nos Campos Deflagrado­s do Senhor

Autor: Bernardo Kucinski. Ed.: Alameda. R$ 48 (184 págs.)

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Reprodução Detalhes de obras do artista Antonio Manuel, que retratou época da ditadura

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