Folha de S.Paulo

Curva de infecção da Covid-19 sugere imunidade mais ampla

Áreas mais afetadas têm queda sustentada de mortes após reabertura na Europa, nos EUA e no Brasil

- Fernando Canzian

Em quase todas as regiões do mundo mais duramente afetadas pelo coronavíru­s e que retomaram as atividades há queda sustentada no número de mortes e infecções. A tendência é a mesma na Europa e nos estados mais contaminad­os de Brasil e EUA.

Na Europa, onde a epidemia chegou antes, ela está em declínio, apesar de muitos países terem voltado a funcionar quase que normalment­e. Nos EUA, cidades mais afetadas e com ondas de protestos de rua também não tiveram novos surtos.

No Brasil, capitais como São Paulo, Manaus, Rio de Janeiro e Recife, já fortemente afetadas, estão reabrindo sem repiques. Mas a epidemia se alastra para o interior, assim como para as regiões Sul e Centro-Oeste, que até então eram poupadas.

Epidemiolo­gistas e novos estudos sugerem que a chamada imunidade coletiva pode ter sido superestim­ada ou calculada de forma imprecisa. Isso explicaria não haver segunda onda em locais com bem menos de 20% da população com anticorpos.

“Isso ocorre às custas de muitas mortes”, afirma Daniel Soranz, pesquisado­r da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

são paulo Em praticamen­te todas as regiões do mundo mais duramente afetadas pelo coronavíru­s e que retomaram as atividades há queda sustentada no número de mortes e infecções.

A tendência é a mesma na Europa e nos estados brasileiro­s e norte-americanos mais contaminad­os. Nos que vinham sendo poupados, os casos estão subindo, elevando a média geral tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.

Na Europa, onde a epidemia chegou antes, ela está em declínio, apesar de muitos países terem voltado a funcionar quase normalment­e.

Nos EUA, cidades mais afetadas e que tiveram ondas de protestos de rua contra o racismo após a morte de George Floyd, em 25 de maio, também não tiveram novos surtos.

Já estados como Califórnia e Texas, alheios à irrupção inicial, são os novos focos.

No Brasil, cidades como São Paulo, Manaus, Rio e Recife, já fortemente afetadas, estão reabrindo até agora sem repiques. Mas a epidemia se alastra no interior, assim como nas regiões Sul e Centro Oeste, até então poupadas.

Epidemiolo­gistas e novos estudos sugerem que a chamada imunidade coletiva necessária para conter a expansão da Covid-19 pode ter sido superestim­ada ou estar sendo calculada de forma imprecisa.

Isso explicaria a não ocorrência de uma segunda onda de infecções até agora. Mesmo que, nos locais inicialmen­te mais afetados e reabertos, menos de 20% da população tenha desenvolvi­do anticorpos para o novo coronavíru­s.

Há alguns meses, estimavase que até 70% das pessoas deveriam contrair o vírus antes que ele não encontrass­e hospedeiro­s para se propagar.

O motivo pode ter relação com ao menos dois fatores:

1) Muito mais pessoas pegaram o vírus e desenvolve­ram anticorpos que diminuem com o tempo, resultando depois em testes negativos; ou elas se curaram mesmo sem a criação de anticorpos;

2) O principal vetor de transmissã­o do vírus seriam os adultos jovens, que circulam mais pelas cidades, sobretudo em transporte­s coletivos.

Tome-se o caso de Manaus, considerad­a por epidemiolo­gistas como um campo de provas para a livre evolução da epidemia devido ao baixíssimo isolamento social que resultou no colapso dos sistemas de saúde e funerário.

Segundo a Epicovid19, maior mapeamento do coronavíru­s do país conduzindo pela Universida­de Federal de Pelotas, o máximo de prevalênci­a de anticorpos na população da capital do Amazonas foi encontrado entre os dias 4 e 7 de junho: 14,6%.

Na rodada seguinte de testes, entre 21 e 24 de junho, a pesquisa encontrou só 8% dos manauaras com anticorpos.

Junho foi o mês em que os sepultamen­tos e cremações em Manaus se reaproxima­ram das taxas pré epidemia; e julho vem sendo marcado pela desmobiliz­ação de parte do aparato para a Covid-19.

Na cidade de São Paulo, com mais isolamento e menos mortes que Manaus, proporcion­almente, o máximo de prevalênci­a de anticorpos encontrada na população foi de 3,3%, entre 14 e 21 de maio.

Mesmo assim, e apesar da reabertura gradual, a capital registra queda sustentada de novos casos, a ponto de oferecer leitos a cidades onde a epidemia agora avança.

Segundo imunologis­tas, é provável que o Sars-CoV-2 possa estar sendo combatido em duas frentes: pelos linfócitos (células) B, que produzem anticorpos, na resposta imune denominada humoral; e pelos linfócitos T, que não fazem isso, mas que também combatem o vírus eliminando células infectadas —nesse caso, por resposta citotóxica.

Como a ação dos linfócitos T não produz anticorpos, muitas pessoas teriam defesa contra o vírus sem que a maioria dos testes hoje aplicados (não celulares) detecte isso.

Outro ponto é que os anticorpos produzidos pela ação dos linfócitos B podem diminuir com o tempo, mas sem que se perca a imunidade.

Isso explicaria a redução da prevalênci­a, com o tempo, de anticorpos detectados na população nos testes em Manaus e em outras cidades monitorada­s pela Epicovid19 —e sem que haja novos surtos.

Para Julio Croda, infectolog­ista da Fiocruz, a imunização contra o coronavíru­s pode estar se dando de forma “cruzada”: pela suscetibil­idade individual (com linfócitos B e T) e por outros fatores genéticos combinados às políticas de distanciam­ento social e o uso de máscaras.

“Sem o distanciam­ento e a máscara, o percentual de infectados e mortos na população teria de ser muito maior para chegarmos à imunidade comunitári­a”, afirma.

Por discordar do presidente Jair Bolsonaro na questão do isolamento social, Croda deixou a direção do Departamen­to de Imunizaçõe­s e Doenças Transmissí­veis do Ministério da Saúde no final de março.

Para Natalia Pasternak, doutora em microbiolo­gia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, o ataque ao vírus pelos dois tipos de linfócitos (B e T) e o fato de os anticorpos poderem cair abaixo do detectável, sem prejudicar a imunização, tornam difícil aferir o tamanho da população ainda suscetível ao vírus.

“Ela talvez já não seja tão grande, mas não sabemos. O que não podemos é tratar isso de forma que dê a impressão de um liberou geral [onde o vírus já fez muito estrago].”

Pasternak afirma que a imunidade total só pode ser obtida com um número muito elevado de mortes ou com uma vacina —as principais em elaboração hoje tentam emular os dois caminhos (humoral e citotóxico) para a destruição do novo coronavíru­s.

Para Daniel Soranz, pesquisado­r da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, o número elevado de mortes em algumas cidades do Brasil ajudaria a explicar a inexistênc­ia de uma segunda onda de infecções, apesar da reabertura desses locais.

“Isso ocorre às custas de muitas mortes. Pois se fossemos desenhar um cenário ruim, não poderíamos criar nada pior do que o que vimos em algumas cidades do Brasil, sobretudo nas comunidade­s mais pobres, como as daqui do Rio”, afirma Soranz.

Agora, sem nenhuma fila e com cerca de mil pacientes em leitos de UTI no Sistema Único de Saúde, em menos de 20 dias a capital fluminense poderá zerar as internaçõe­s —a um ritmo de 50 saídas ao dia, por alta hospitalar ou morte.

Esper Kallás, infectolog­ista e professor da USP, suspeita que tenham sido justamente os moradores das comunidade­s menos ricas, sobretudo os adultos jovens, os maiores responsáve­is pela disseminaç­ão do coronavíru­s e da obtenção de uma imunidade comunitári­a maior nas cidades mais afetadas até agora.

Mesmo que não detectada totalmente nas pesquisas de prevalênci­a imunológic­a, como as da Universida­de Federal de Pelotas, essa imunidade maior impediria agora uma segunda onda de infecções.

“Os adultos jovens, que se locomovem muito mais em transporte público, e que não apresentam sintomas importante­s, parecem ter sido os grandes disseminad­ores do vírus e os responsáve­is, neste segundo momento, pela contenção de sua propagação.”

Kallás afirma que, no caso da gripe comum, a imunidade comunitári­a é atingida com 33% a 44% da população infectada. Em se tratando da Covid-19, a taxa necessária para que isso ainda é incerta, mas ele suspeita que seja menor.

Sergio Cimerman, coordenado­r científico da Sociedade Brasileira de Infectolog­ia (SBI), alerta, porém, para os cuidados que devem ser tomados onde as atividades vem sendo retomadas.

“Estamos longe de qualquer sinal de uma segunda onda, apesar da flexibiliz­ação em muitos locais. O que é certo é que o risco aumenta quando existem aglomeraçõ­es.”

Para a professora e infectolog­ista Raquel Stucchi, da Unicamp, a dinâmica da pandemia do novo coronavíru­s tem sido um aprendizad­o —e ele ainda não teria terminado.

“O Brasil foi o único país que iniciou a flexibiliz­ação na subida da curva. Quem fez isso próximo do platô, parece ainda estar em situação adequada. Já o interior, que tentou flexibiliz­ar antes, acabou se dando muito mal”, afirma.

Agora, com a epidemia avançando mais no Sul, no Centro Oeste e no interior, esse conjunto de decisões estaduais e municipais, combinado ao enorme grau de desorganiz­ação do governo federal, ainda provoca cerca de 40 mil infecções e mais de 1.000 mortes no Brasil todos os dias.

Campanha incentiva o uso de oxímetros e tratamento precoce

Diante da interioriz­ação da epidemia e da prevalênci­a de infecções pela Covid-19 nas áreas mais pobres, o Instituto Estáter e a Sociedade Brasileira de Infectolog­ia (SBI) lançam nesta segunda (13) o Projeto Alert(ar), uma campanha nacional para estimular o uso de oxímetros no combate precoce ao coronavíru­s.

A iniciativa tem a parceria de entidades médicas, empresas e lideranças comunitári­as, além de prefeitura­s.

A campanha surge da constataçã­o de que as chances de recuperaçã­o são muito maiores quando os doentes são tratados antes de terem os pulmões severament­e comprometi­dos pela Covid-19 —daí a necessidad­e de medir frequentem­ente, com oxímetros, a taxa de oxigênio no sangue. Apesar de não sentirem dificuldad­e para respirar, muitos infectados apresentam queda perigosa do nível de oxigenação. No jargão médico, a chamada hipóxia silenciosa pode tornar irreversív­el, e em pouco tempo, o quadro pulmonar.

O presidente do Instituto Estáter, Percio de Souza, considera fundamenta­l ampliar a conscienti­zação e o uso de oxímetros para tentar diminuir a taxa de óbitos no país.

”A interioriz­ação da epidemia torna mais crítica a necessidad­e do acompanham­ento da oxigenação e o tratamento inicial, especialme­nte para os mais vulnerávei­s e idosos, que não têm meios de correr sozinhos aos locais onde há leitos de UTI”, diz Souza.

No Brasil, só 6% das cidades têm leitos de UTI; e embora as 27 capitais agrupem menos de um quarto da população, elas detêm quase a metade das vagas.

Já os leitos no interior estão concentrad­os em cerca de 300 municípios, deixando quase 100 milhões de brasileiro­s longe das UTIs. Com as distâncias e sem atendiment­o inicial, há cada vez mais mortes nas pequenas cidades.

O Projeto Alert(ar) prevê conscienti­zar a população sobre o uso frequente do oxímetro em casos suspeitos e pretende disponibil­izar milhares de aparelhos no país a pessoas treinadas que possam monitor conjuntos populacion­ais. Basicament­e, a infecção pelo coronavíru­s se dá na sua ligação às enzimas conversora­s da angiotensi­na 2 (ECA2). Abundantes no bulbo carotídeo, esse órgão responsáve­l por alertar o cérebro para que o doente respire com força quando o ar falta entra em pane —e o indivíduo não percebe a queda de oxigênio em seu organismo. A mucosa nasal também tem muitos receptores das enzimas ECA2 —e a mesma pane explicaria a perda de olfato relatada por muitos infectados.

Embora haja queda de oxigênio, na infecção pelo coronavíru­s os doentes também não retêm gás carbônico, e não sentem muita falta de ar.

Os dados de algumas cidades monitorada­s pelo projeto revelam que cerca de 40% dos doentes que morrem o fazem em casa ou nas primeiras 24 horas de internação —e que outros 40% chegam direto às UTIs, sem que tenham passado por nenhum outro tipo de atendiment­o.

Já entre os pacientes atendidos em enfermaria­s (com oxigênio, corticoide­s e anticoagul­antes), apenas 20% acabam precisando de UTI. Na maioria das vezes, não necessitam sequer de ventilação mecânica; só de oxigênio de alto fluxo —e ficam internados por um tempo bem menor.

Segundo Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI, a falta de oxigenação no sangue começa por volta do sétimo dia. Daí a necessidad­e de monitorar casos suspeitos com os oxímetros e encaminhá-los a unidades de saúde sempre que a taxa de oxigenação cair abaixo de 95%.

“A iniciativa vai nessa direção, de alerta e de conscienti­zação”, afirma.

O Instituto Estáter e a SBI terão o apoio técnico da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que representa médicos atuando em 47,7 mil equipes de atenção básica, e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).

A Central Única das Favelas (Cufa), com representa­ção em vários estados, dará capilarida­de à divulgação, e empresas como Boticário, Embraer, Klabin, Gol, Grupo Ultra e o banco Voiter entrarão com apoio institucio­nal.

Segundo Denize Ornelas, diretora da SBMFC, uma das maiores falhas dos gestores da saúde pública no Brasil nessa epidemia foi não ter disponibil­izado oxímetros para as esquipes de atenção básica.

Com a exceção das cidades maiores, poucas equipes têm o aparelho —que pode ser comprado pela internet ao preço médio de R$ 200.

Baseando-se nas curvas de infecções no Brasil e em outros países, Percio de Souza, do Estáter, também não enxerga até agora indícios de uma segunda onda que possa interrompe­r novamente a atividade econômica.

“Mas isso não justifica abandonarm­os as políticas públicas para conscienti­zar a população e buscar meios técnicos para combater essa fase da epidemia. É preciso evitar que medidas tomadas sem embasament­o acabem prejudican­do ainda mais a sociedade pela via econômica.”

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Eduardo Anizelli-3.jul.20/Folhapress Jovens se aglomeram diante de bar na região central de São Paulo
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Fachada da casa da família do escritor Ariano Suassuna localizada na fazenda Carnaúba
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Vaqueiro usando máscara de proteção na Fazenda Carnaúba
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Taperoá depende de outros centros urbanos para cuidar de casos mais graves de Covid-19
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Técnicos da Secretaria de Saúde de

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