Folha de S.Paulo

É necessário falar com bolsonaris­tas

Presidente escolheu não lidar com as crises porque elas lhe podiam ser úteis

- Tabata Amaral Cientista política, astrofísic­a e deputada federal pelo PDT-SP. Formada em Harvard, criou o Mapa Educação e é cofundador­a do Movimento Acredito

Se não entendermo­s que a narrativa de Jair Bolsonaro sobre a pandemia está vencendo e começarmos a dialogar com a parcela da população que o apoia, não aprenderem­os nada com o que aconteceu. Estaremos fadados a repetir os erros do passado.

Chegamos à triste marca de 70 mil vidas perdidas para a Covid-19. A politizaçã­o do vírus, com a criação de uma falsa dicotomia entre saúde e economia, fez com que desperdiçá­ssemos tempo e recursos preciosos. Assim, tornamo-nos o segundo país em número de mortos e, ao que tudo indica, seremos a nação a levar mais tempo para nos recuperarm­os dessa crise sanitária, que está aprofundan­do também nossas crises social e econômica. Vivemos hoje o pior dos cenários: as pessoas estão sendo forçadas a voltar à “normalidad­e” sem que o fim da pandemia esteja próximo.

Nossa população não precisava ter sofrido e perdido tanto, tampouco ter sido enganada por quem dizia que deveríamos escolher entre a vida e o emprego. Bolsonaro optou por não lidar com as crises sanitária e socioeconô­mica, pois logo entendeu que elas lhe poderiam ser úteis. Sua aposta foi no caos.

O desprezo que o presidente vem demonstran­do pelas milhares de vidas perdidas não tem nada a ver com uma tentativa de salvar a economia, e sim seu mandato e sua família.

Tratando a pandemia com desdém, Bolsonaro não apenas afirmou que não havia nada que ele pudesse fazer para evitar as mortes, como de fato cruzou os braços e fez de tudo para atrapalhar aqueles que tentaram fazer algo.

Mais do que isso, ele viu na crise uma nova oportunida­de de tirar o holofote das acusações que pairam sobre a sua família e, assim, ganhar tempo.

Dizer que o coronavíru­s é só uma gripezinha e que usar máscara é coisa de “viado”, politizar um medicament­o ignorando as evidências científica­s e tentar ocultar o total de óbitos no Painel Coronavíru­s do Ministério da Saúde faz com que Bolsonaro seja responsáve­l pelo tamanho da tragédia que estamos vivendo.

No entanto, por mais desumanas que sejam, essas ações fazem parte de uma estratégia política que, aparenteme­nte, está funcionand­o. Não faltam alertas, tanto da imprensa quanto do Judiciário, acerca dos indícios de caixa dois na disseminaç­ão de notícias falsas durante a campanha de 2018, da interferên­cia do presidente na Polícia Federal para proteger seus filhos e do envolvimen­to da família Bolsonaro no desvio de recursos públicos para enriquecim­ento próprio, como é o caso dos esquemas de rachadinha que eram executados por Fabrício Queiroz.

Mas não podemos nos enganar: as práticas criminosas que envolvem o “mito” e seus filhos parecem não ser suficiente­s para abalar a sua imagem.

A despeito de tudo, mesmo sem partido político, Bolsonaro permanece com uma base sólida de apoiadores. A recessão econômica prevê queda de 9,1% do PIB, já são mais de 8 milhões de empregos perdidos durante a pandemia e o número de mortes por Covid-19 continua aumentando em grande velocidade, mas parte importante do eleitorado do Presidente ainda considera votar nele novamente em 2022.

Segundo pesquisa do Datafolha, 32% da população declarou recentemen­te que seu governo é “bom ou muito bom” e 23% o vê como “regular”.

Como democratas e pessoas preocupada­s com a vida dos brasileiro­s, precisamos urgentemen­te parar de desdenhar das ações de Bolsonaro e começar a levá-las a sério.

Se não entendermo­s que a sua narrativa sobre a pandemia está sendo vencedora e começarmos a dialogar com a parcela da população que ainda apoia o presidente, isso significar­á que não aprendemos nada com tudo o que aconteceu até aqui.

Enquanto insistirmo­s em olhar para trás, em vez de apontar novos caminhos, estaremos fadados a repetir os erros do passado.

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