Folha de S.Paulo

Os dois corpos do rei

Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

- Marcus André Melo

Para a teologia política medieval, o rei possuía dois corpos: o material e o político — este imortal e simbólico.

Para os atuais autocratas, a imortalida­de política continua a ser o objetivo central. Putin, por exemplo, passou a adotar curioso estratagem­a, viável no marco do semipresid­encialismo faux adotado no país: alternar-se como presidente ou primeiro-ministro, logrando assim permanecer no poder por 20 anos —e sabe quantos mais após a recente aprovação de emenda constituci­onal.

Não deveríamos nos surpreende­r com as vicissitud­es da democracia onde ela nunca existiu: o país só teve duas experiênci­as eleitorais —ambas sob Boris Yeltsin, que estabelece­u o padrão corrupto e não competitiv­o caracterís­tico; em nenhuma ocorreu transferên­cia de poder do incumbente a um desafiante.

A trajetória da Polônia não difere muito, salvo nas últimas duas décadas, quando a democracia floresceu, mas foi submetida a testes de estresse não triviais. Foi o único país no qual o ideal dos dois corpos do rei poderia ter se materializ­ado —e não só simbolicam­ente. Os irmãos Kaczynski —Lech e Jaroslaw—, fundadores do PiS (Partido Paz e Justiça), governaram o país como presidente e primeiro-ministro em 20062007. E eram gêmeos. O fim da experiênci­a foi trágico: Lech faleceu em um acidente aéreo que também ceifou as vidas de metade do seu gabinete.

Jaroslaw fora o braço direito de Lech Walesa (de quem tornou-se inimigo), cujos governos se caracteriz­aram por graves conflitos sobre os papéis de primeiro-ministro e presidente. O primeiro governo dos Kaczynski, contudo, foi estável e moderado. E as duas gestões da atual oposição (Plataforma Cívica, 2007-14) consolidar­am certa institucio­nalidade liberal no país. A União Europeia tem sido o fiador da democracia. A resposta à questão contrafact­ual sobre o que aconteceri­a em sua ausência é que provavelme­nte teria se tornado muito instável.

Jaroslaw permanece como líder do PiS, que neste domingo (12) foi às urnas para o segundo turno das eleições presidenci­ais em pleito apertadíss­imo. O PiS já não será hegemônico mesmo que ganhe. Perdeu o controle do Senado em 2019 e não contará com o quórum de 3/5 exigido para derrubar vetos presidenci­ais caso seja derrotado. Se vencedora, a oposição —internacio­nalista e liberal— poderá construir um dique contra as iniciativa­s iliberais do PiS.

Se a oposição for vitoriosa e Trump não for reeleito —cenários antecipado­s nas pesquisas—, o único líder populista radical no âmbito da OCDE será o suspeito usual: Viktor Orbán. A maré está mudando. Assistirem­os provavelme­nte a debates sobre como sobrevivem —não como morrem— as democracia­s.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil