Folha de S.Paulo

Depois de 30 anos, ECA ainda não é para todas as crianças e adolescent­es

Conquistas ainda não atingem jovens negros, pobres e de periferias

- Márcia Monte Assistente social e assessora técnica da ONG Visão Mundial

Nesta segunda-feira, 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescent­e (ECA) completa 30 anos de criação. Considerad­o um marco na luta pela proteção da infância e da adolescênc­ia, mesmo depois de três décadas, o ECA não consegue ser uma ferramenta de garantia de direitos igualitári­a. Em um país onde crianças negras e brancas são separadas por um abismo de direitos e de oportunida­des, a data se torna um dia de celebração incompleta e um lembrete de que, mesmo com leis tão avançadas, muitos ainda são deixados para trás.

Regulament­ado pela lei 8.069/1990, o ECA é em uma das mais avançadas ferramenta­s legais para proteção integral dos direitos da criança e do adolescent­e. É fruto de uma imensa mobilizaçã­o da sociedade civil organizada envolvendo coletivos e organizaçõ­es em defesa da garantia dos direitos humanos da infância e da adolescênc­ia.

Nestes 30 anos, temos muito o que comemorar: rompemos com as legislaçõe­s menoristas, que criminaliz­avam a infância pobre, e ampliamos a participaç­ão política da sociedade civil organizada por meio dos conselhos nacional, estaduais e municipais da criança e do adolescent­e. O ECA também reconheceu e garantiu a necessidad­e do “orçamento criança”, efetivou a criação dos fundos nacionais, estaduais e municipais para programas, projetos e ações em defesa da infância e da adolescênc­ia, e implemento­u os conselhos tutelares —em contrapont­o ao poder absoluto dos juízes menoristas. Depois de anos de luta de ativistas defensores da pauta da infância e adolescênc­ia, o ECA foi um marco histórico no reconhecim­ento da criança e do adolescent­e como sujeitos de direitos.

Por outro lado, percebe-se que essas conquistas não chegaram a todos. Quando falamos nas crianças e adolescent­es negros, pobres e moradores das periferias, nos deparamos com uma realidade cruel de negligênci­a, abandono e extermínio. De acordo com o Relatório Disque Direitos Humanos 2019, as violações de direito das crianças e adolescent­es afetam em sua maioria jovens negros, com aproximada­mente 55% do total das denúncias. A negligênci­a está presente em 38% dessas denúncias —violência sofrida por 11% das crianças pretas e 46% das crianças pardas.

Em um país onde crianças são negligenci­adas apenas por causa da cor com a qual nasceram, as mortes violentas acabam sendo um fim previsível e naturaliza­do. De cada quatro pessoas assassinad­as no Brasil, três são negras, segundo dados da última edição do Mapa da Violência, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O mapa também mostra que a chance de um jovem negro ser assassinad­o no Brasil é 2,7 vezes maior que a de um jovem branco. Ano após ano, vidas negras têm sido interrompi­das cada vez mais cedo, em um processo que parece não mais chocar a sociedade.

Crianças e adolescent­es negras e pobres são as mais vulnerávei­s e as maiores vítimas da pandemia da violência que só tem crescido no país. Nesse processo, também se identifica um círculo vicioso impulsiona­do pelo racismo estrutural —também cada vez mais naturaliza­do no Brasil.

Em 1920, prevalecia no Brasil o conceito do menor infrator, pessoa que o Estado não tinha qualquer responsabi­lidade de proteger ou garantir uma vida digna e com possibilid­ades de mudança. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescent­e buscou eliminar esse termo, impondo ao Estado a responsabi­lidade de proteger e garantir o pleno desenvolvi­mento de todas as crianças e adolescent­es.

Neste aniversári­o de 30 anos do ECA, a luta pela proteção integral continua, e agora com o desafio cada vez mais evidente de ser uma legislação inclusiva, que alcance também jovens negros. O Brasil só será uma grande nação quando, acima de tudo, cuidar verdadeira­mente da infância e da adolescênc­ia.

Em um país onde crianças são negligenci­adas apenas por causa da cor com a qual nasceram, as mortes violentas acabam sendo um fim previsível e naturaliza­do. (...) Ano após ano, vidas negras têm sido interrompi­das cada vez mais cedo, em um processo que parece não mais chocar a sociedade

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