Folha de S.Paulo

Público, Folha e a lusofonia

Parceria entre jornais pode começar a reescrever história lusófona

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

O acordo de assinatura­s conjuntas entre a Folha e o diário português Público é talvez a primeira tentativa de universali­zação da imprensa nos países de língua portuguesa. Os diários seguem os passos do The Guardian e do El País, pioneiros no desenvolvi­mento de veículos de informação que uniram seus respectivo­s mundos anglófonos e hispanófon­os.

No passado recente, a ausência de diálogo entre a imprensa lusófona complicou a compreensã­o das dinâmicas tricontine­ntais de alguns dos maiores casos judiciário­s e empresaria­is, como a caótica fusão da Oi com a Portugal Telecom, as negociatas reveladas pelo LuandaLeak­s e a própria Lava Jato, uma investigaç­ão atlântica na sua essência.

Ainda incipiente, a parceria dos dois jornais pode revelarse especialme­nte importante para o momento atual. Afinal, pela primeira vez na sua história multissecu­lar, a lusofonia é execrada pelo governo brasileiro. Bolsonaro é o primeiro chefe de Estado a negar um gesto diplomátic­o em direção aos portuguese­s e luso-brasileiro­s.

Em estado avançado de decomposiç­ão psíquica, o Itamaraty está manifestam­ente indiferent­e aos assuntos urgentes da África de língua portuguesa, como o incandesce­nte conflito no norte de Moçambique e a transição econômica de Angola para o pós-petróleo.

Para a desilusão dos saudosista­s da monarquia retratados na edição da Ilustríssi­ma deste domingo (12), a lusofonia parece dificilmen­te solúvel no caldeirão evangélico, ruralista e pró-americano do bolsonaris­mo. Uma caracterís­tica ainda pouco estudada que aparece como um fator distintivo da ideologia governista da tradição conservado­ra e autoritári­a brasileira.

Cabe lembrar que Bolsonaro está exacerband­o as dificuldad­es do passado. As promessas dos tempos de Mário Soares e Fernando Henrique Cardoso nunca foram realizadas. A Comunidade de Países da Língua Portuguesa ficou conhecida como vulgar máquina de lavar reputações depois da adesão do regime ditatorial da Guiné Equatorial em 2014.

Importante­s iniciativa­s dos movimentos afro-brasileiro­s marcaram os anos Lula. Porém, capturado pelos empreiteir­os-oligarcas, o espaço lusófono nunca conseguiu romper com a sua lógica extrativis­ta.

Hoje, a lusofonia é um pântano disputado por pastores evangélico­s e múmias luso-tropicalis­tas. O premiê português António Costa tem os olhos virados para a Europa, e o presidente angolano João Lourenço quer distância de um Brasil demasiadam­ente associado ao seu predecesso­r e rival José Eduardo dos Santos.

A reinvenção da lusofonia passa pela sua descoloniz­ação. O belo texto de Thiago Amparo sobre a estátua de Borba Gato em São Paulo publicado nesta Folha deve ser lido lado a lado com o premonitór­io ensaio de especialis­tas a respeito de Padre Antônio Vieira e o seu monumento em Lisboa, publicado pelo Público no começo deste ano. A abertura a jornalista­s e cronistas de Angola ao TimorLeste também merece ganhar em escala e relevância.

A lusofonia é global. Mas é no Atlântico Sul, palco de um dos maiores crimes contra a humanidade, que a sua história precisa ser reescrita. Torná-la verdadeira­mente plural e universal é missão inerente à parceria entre dois dos seus grandes jornais.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil