Folha de S.Paulo

Tem que doer!

Dor é o que sinto, pois é tão difícil entender este país

- Paola Minoprio Diretora de pesquisa do Instituto Pasteur de Paris, coordenado­ra da Plataforma Cientifica Pasteur – USP, conselheir­a de comércio exterior da França

Dor é o que eu estou sentindo agora, pois é tão difícil entender este país! Também doía quando criança eu apanhava e às vezes não entendia o porquê. Confesso que mamãe não foi fácil! Ela sempre teve esperança de me manter no bom caminho. Trabalhava de manhã à noite, controlava a disciplina dentro e fora de casa mas, rebelde, segui minha estrada.

Certamente, minha rebeldia foi devida à falta da figura paterna, como disse o ministro... A ausência de meu pai deve ter sido decisiva e o inimigo atacou!

Pondero então com Albert Camus, escritor argelino, que escreveu: “Não é o sofrimento das crianças que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica tal sofrimento”.

Até hoje sou criança e rebelde, pois mamãe me diz ainda que não tenho remédio. Como cientista, pensei em acabar com essa dor cotidiana. Considerei cloroquina, pois vi o presidente mostrar umas dessas caixinhas na internet. Como o fármaco não tem aval científico para o vírus que nos causa tanta dor de cabeça, desisti.

Lembrei daquela publicidad­e antiga que dizia “Tomou Doril, a dor sumiu!” Optei, então, pelo Doril! Agora uso todos os dias em prevenção da dor.

Nesta semana senti o meu caso piorar a cada notícia. Vi na televisão um imagem bizarra. O segundo homem do Ministério da Saúde enxotando de uma reunião um garçon que só tentava fazer o seu trabalho. Com gestos bruscos de braço, gritava “Sai daí. Eu falei ‘não’. O que você não entendeu?”.

Eu, da minha parte não entendi nada. Parece que este homemécoro­neldeForça­sEspeciais do Exército. Se ele dá ordens desta maneira, decerto mistura autoridade e autoritari­smo.

Senti uma dor súbita e me lembrei daquele fulano, na sala de espera do aeroporto, que com a máscara ostentada como coleira, andava de um lado a outro usando o celular, falando alto e, provavelme­nte, cuspindo vírus por toda parte…

Eu, como não apanhei que chegasse da minha mãe, chamei o sujeito pedindo que por favor colocasse a máscara e pensasse nos outros à volta.

Ele, além de me dizer que estava vindo de uma estação de esqui isenta de vírus por causa do frio (!), completou com o “Você sabe com quem está falando?”.

Que agonia ao concluir que esse pateta brasileiro, cheio de arrogância, acredita que é qualquer coisa neste mundão de Deus… Como diria o Mário Sérgio Cortella, filósofo e educador, um indivíduo como esse é o “vice-treco do sub-troço”.

Tomei Doril, mas como a cloroquina, não fez efeito. Lembrei das pessoas que lutam dia e noite para nos livrar da curva ascendente de infecções e mortes pela Covid-19, que as autoridade­s brasileira­s despudorad­as tentam ocultar do mundo.

Pensei na agenda ambiental do governo, na Amazônia e sua “Mata Atlântica” e logo na lei de medidas preventiva­s contra o coronavíru­s nas terras indígenas, que o presidente sancionou com vetos ao acesso à água potável, a materiais de higiene, leitos hospitalar­es e respirador­es mecânicos.

Este povo brasileiro, os quilombola­s e outros povos tradiciona­is também não terão direito à verba emergencia­l… Talvez Bolsonaro não tenha apanhado que chegasse da mãe dele, pois não aprende nem com calamidade pública!

A dor se agravou com a decisão do presidente da suprema corte brasileira de mandar forças-tarefa da Lava Jato compartilh­arem dados sigilosos de investigaç­ões com o procurador-geral da República! É medo de que a Lava Jato possa passar a investigar pessoas com foro privilegia­do.

Soltei um palavrão daqueles bem picantes e conquistei um tabefe bem ardido de minha mãe. Num rompante de rebeldia pedi: “bate mais, mamãe, pois com certeza ainda não estou disciplina­da que chegue!”.

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