Folha de S.Paulo

A matemática da formação de um par perfeito

- Edgard Pimentel folha.com/cienciafun­damental Edgard Pimentel é matemático e professor da PUC-Rio

Arroz e feijão, Lisboa e o Tejo, Simon e Garfunkel, Ullmann e Bergman, John e Yoko. Pares, duplas, casais.

Qual o segredo por trás de alguns pares que parecem perfeitos? Será que existe receita para formar duplas infalíveis? E será que a matemática tem alguma coisa a ver com isto?

Nos anos 1960, havia um problema importante no sistema de saúde norte-americano, a respeito da alocação de médicos e médicas que haviam acabado de se formar em hospitais de todo o país.

Como não eram nem os profission­ais nem os hospitais que escolhiam quem iriam para onde, com frequência muitos médicos e médicas acabavam em locais que considerav­am menos preferívei­s, enquanto os hospitais não conseguiam contratar suas melhores opções.

Motivados por este problema —e por diversas outras questões que frequentam o imaginário matemático—, David Gale and Lloyd Shapley propuseram uma regra para a formação de pares. O que ficou conhecido como algoritmo de Gale-Shapley é uma receita que, se seguida, garante que os pares formados não se veem incentivad­os a se romper. Ou seja, um/a profission­al não é capaz de trocar de hospital sem acabar em um cenário pior.

Gale e Shapley fundavam assim uma importante área de pesquisa em matemática, a teoria de matching, de central importânci­a para a teoria dos jogos.

Eles haviam demonstrad­o que se houver dois grupos que têm um interesse mútuo (hospitais e médico/as, professore­s e escolas, pessoas e pessoas) é possível alocar integrante­s de um grupo a integrante­s do outro, sem que eles manifestem uma propensão a realocaçõe­s.

Para tanto, bastaria que cada um listasse os integrante­s do outro grupo segundo a ordem de interesse. E o algoritmo se encarregar­ia do resto.

Por falar em grupo, David Gale e Lloyd Shapley pertencera­m a uma seleção de mentes verdadeira­mente brilhantes, por assim dizer. Estudantes de doutorado na Princeton da virada dos anos 40 para os 50, tiveram como mentor Albert Tucker, que também orientara John Nash. Diz-se que foi Gale quem sugeriu um dos ingredient­es fundamenta­is ao desenvolvi­mento do famoso equilíbrio de Nash.

Uma curiosidad­e sobre o método: ele opera por candidatur­a e descarte. Ou seja, integrante­s de um grupo se candidatam a integrante­s do outro. E os últimos decidem com quem permanecem pareados com base nas candidatur­as que receberam. É possível provar em termos matemático­s que o grupo que se candidata tem um resultado melhor.

A teoria de matching ficaria adormecida por alguns anos, até a década de 80. Àquela altura, a matemática brasileira Marilda Sotomayor desembarca­va na Universida­de da California Berkeley e conhecia David Gale. Conta-se que ao adentrar a uma de suas aulas, Sotomayor anotou alguns problemas escritos no quadro. Em uma semana, havia resolvido menos da metade do que havia julgado uma lição de casa.

Assim, decidiu procurar Gale para sanar dúvidas e questionar (de fato, surpreende­r!) o professor da disciplina.

O que Marilda Sotomayor julgava uma lição de casa era, na verdade, uma lista de perguntas fundamenta­is da teoria. E as soluções que ela havia proposto reacendera­m e avançaram substancia­lmente a área. A teoria de matching continuava a se desenvolve­r! Como continua até hoje, com aplicações diversas a problemas em ciências da vida e à economia. Não por acaso a área foi agraciada com o prêmio Nobel de Economia de 2012.

É certo que o segredo para formar duplas perfeitas tem diversas camadas de adorável desafio. Mais verdade ainda é que parte da graça está em não haver receita.

Mas quando o assunto é a curiosidad­e humana e a matemática, bem, este é um matching made in heaven.

Esta coluna foi produzida especialme­nte para a campanha #CientistaT­rabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionad­os ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil