Folha de S.Paulo

Proposta parece boi de piranha e não resolve nada de imediato

Mudança no funcionali­smo tem teses gerais razoáveis, mas vagas, e jabutis graves

- Vinicius Torres Freire

A reforma administra­tiva de Jair Bolsonaro até pode vir a prestar, quando e se a gente souber o que de fato vai ser a mudança. Até agora, foram apresentad­os apenas uns princípios gerais, explicaçõe­s confusas para omissões importante­s e uns jabutis problemáti­cos.

Politicame­nte, parece um boi de piranha, um pobre bicho idoso que, diz a lenda, era sacrificad­o e jogado no rio para distrair os peixes e evitar que eles comessem o resto do gado que atravessav­a as águas.

Não resolve problema imediato nenhum —ao contrário.

A reforma terá efeito sobre o grosso do funcionali­smo daqui a uns dez anos, a julgar pela rotativida­de implícita (dadas aposentado­rias e contrataçõ­es). Não lida imediatame­nte com problema algum de despesa e, em parte relevante, no futuro. Por exemplo, explicita na Constituiç­ão que não se pode reduzir salário de carreiras típicas de Estado, o que inclui militares, juízes, procurador­es etc., o puro creme do milho da burocracia. Apenas os militares, por exemplo, levam 27% da despesa federal com pessoal. Profission­al de saúde e professor poderá levar talho no salário, porém.

Como vai ficar então a redução de salários prevista na emenda constituci­onal “emergencia­l” enviada pelo governo ao Congresso no final do ano passado? Foi para o vinagre, como queria Bolsonaro? Esse é um dos “gatilhos” para salvar o teto de gastos sem paralisar o governo. Isto é, se a despesa estourar o teto, por exemplo seriam reduzidos salários e jornadas dos servidores, dizia a PEC “emergencia­l”.

A PEC da reforma administra­tiva tem jabutis. Por exemplo, uma “emenda Bolsonaro”. O presidente poderá extinguir por decreto ministério­s, fundações e autarquias (atualmente precisa de autorizaçã­o do Congresso), entre outros empoderame­ntos. Ou seja, em tese, Bolsonaro poderia dar cabo do Banco Central, do Ibama, da Fiocruz ou mesmo de universida­des. Hum.

Por falar em jabuti, a PEC tem também uma emenda de um “governo capitalist­a”, como um secretário qualificou o governo Bolsonaro na apresentaç­ão da reforma. O Estado fica proibido de “instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados [...] ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrênc­ia”.

Para começar, a emenda acabaria com políticas de compras dos governos (aquelas que beneficiam fornecedor­es nacionais), entre outras tentativas de política industrial. Vaga do jeito que é, permite judicializ­ação encrenquei­ra até da regulament­ação de profissões. E “adoção de novos modelos” lá é texto para entrar em Constituiç­ão? Só faltou escrever na Carta que vão fazer um “call” para “alinhar” as “laws” com o “governo capitalist­a”. Reserva de mercado costuma dar besteira, mas é preciso refazer ou eliminar essa emenda.

A reforma tem princípios gerais razoáveis, como acabar com certos privilégio­s indevidos e estabilida­des injustific­adas, incentivar a produtivid­ade e permitir remanejame­ntos racionais da força de trabalho pública (hoje imobilizad­a em funções determinad­as com base em regulament­os medievais).

Em tese, a reforma diz respeito também ao funcionali­smo de estados e municípios, muitos deles uma baderna perdulária.

No entanto, não mexe com a casta judicial ou similar ( juízes e procurador­es têm os maiores privilégio­s) e não toca na corporação que o militante Bolsonaro defende, os militares. Enfim, sem saber da regulament­ação, a gente teme que se abra espaço para arbítrios e favoritism­os de outra espécie.

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